O humanismo moderno é idealismo, o antigo é realidade. Define assim Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em seu monumental História da Literatura Ocidental, a diferença entre o que seria o humanismo antigo e o moderno. E qual a importância disso, para além do “mero” repertório clássico?
Antes de tudo, o fato de, que em vez de a crítica literária ficar discutindo a relação entre literatura, banheiros e gênero, ou aquela entre literatura, classe e raça, ela deveria estudar mais gente como Otto Maria Carpeaux. Sem nunca atuar de fato na academia e mantendo-se “fiel” à mídia impressa, ele já demonstrava que, muitas vezes, é o mundo “comum” que acolhe melhor o pensamento mais relevante.
A diferença que Carpeaux estabelece pode nos ajudar a entender o lugar que ocupam uma verdadeira empatia intelectual para com o sofrimento humano e suas produções culturais (entendido, grosso modo, como humanismo). O que é ser um humanista?
Do ponto de vista recente, parecem-me existir dois tipos básicos de humanismo. Por “recente”, quero dizer o “moderno” ao qual se refere Carpeaux. Seguindo a intuição do grande crítico, eu arriscaria dizer que há um primeiro, mais associado à vocação realizadora burguesa, e um segundo, mais ligado ao que costumamos classificar de “esquerda”. Ambos idealistas, ainda que aparentemente opostos – só aparentemente, em parte.
O humanismo moderno é idealista, o antigo é realista
A semelhança dos dois está exatamente na natureza idealista de ambos. “Idealista” aqui significa, em primeiro lugar, crer numa ideia de humano que não existe; em segundo lugar, imaginar que esse humano tem as rédeas do destino em suas mãos, seja pela gestão técnica dos processos que caracterizam a vida (engenharia, ciência), como no humanismo burguês, seja pela crença na capacidade política e social de criar “um novo humano”, como no humanismo típico da “esquerda progressista”. O idealismo de ambos é traído pela vocação mútua à crença na perfectibilidade do homem.
O humanismo moderno, assim, se revela antes mais como um “projeto de homem” do que propriamente como um olhar sobre o modo de a realidade humana se produzir. O humanismo moderno é idealista, o antigo é realista. Eis a diferença contemplada por Carpeaux.
E onde Carpeaux encontra esse humanismo antigo, vocacionado a contemplar a realidade do humano? Entre outros lugares, na tragédia ática, conhecida como tragédia grega ateniense, que floresceu entre os séculos 6.º a.C. e 5.º a.C.. Entre os dramaturgos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. No “diálogo” entre esses três fundadores do teatro ocidental, Carpeaux encontra a rota desse humanismo, de certa forma, superior ao moderno, na medida em que olha para a realidade a partir do ser humano tal como ele é, e não tal como achamos que ele deveria ser um dia.
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A Atenas dessa época é uma Atenas “democrática”, em transformação. Uma Atenas em agonia, imersa numa mudança de costumes, grosso modo, num conflito entre um mundo da tradição, dos deuses, e o mundo da pólis, ou da lei humana – agonia essa tão bem representada pela personagem Antígona, de Sófocles.
Ésquilo coloca em ato o combate entre o destino esmagador traçado pelo deuses e o desejo humano de libertação desse destino (Prometeu Acorrentado). Sófocles desenha a beleza moral de homens e mulheres que são esmagados por esse destino, mas que tombam com dignidade, (Édipo Rei e Antígona). Por fim, Eurípedes, tragikotatos (“o maior de todos os poetas”), segundo Aristóteles, encontra diante de si o indivíduo, sozinho, que enfrenta deuses, pólis, família, emoções e obrigações sociais, e perece no combate contra todos eles (Medeia).
A luta contra o destino, mediante o avanço da técnica, e o desastre implícito nesse avanço, a derrota diante do que é sempre maior do que nós (a cidade, a religião, a lei, as obrigações e mentiras sociais), a infinita fúria presente na vida dos afetos, impermeáveis à razão. Enfim, o que existe exatamente de novo embaixo do sol?