Uma noite, quando eu e uma amiga estávamos indo para um bar encontrar um cara que eu conhecera por meio de um aplicativo de relacionamento, ela perguntou: "O que você diz a eles?" Abri meu perfil e lhe mostrei o celular. "Tenho câncer; por isso, se quiser me namorar, tem de ser rápido!", diz a primeira linha. "Que sensacional", comentou ela, rindo.
Há um ano, quando meu tratamento não estava dando muito certo e comecei a piorar, o namorado com quem eu estava havia 12 anos fez uma viagem de negócios a Londres, onde "reencontrou" uma antiga amiga, uma professora de pilates recém-separada. Depois disso, marcou uma viagem solo para a Europa, e o ouvi sem querer falando de como foi divertido andar na garupa da moto dela com as mãos em seus quadris. E também quanto gostou de passear sozinho sem ter de pensar em câncer. E em mim, pelo visto.
E foi assim que nosso relacionamento acabou. Eu me vi morrendo e, de repente, solteira aos 40 anos, sem saber qual dos dois me apavorava mais.
Meu câncer não está diminuindo; na verdade, está sendo tratado como doença crônica. Sem dúvida, será a causa da minha morte, a menos que eu seja atropelada por um ônibus antes (por que as pessoas sempre oferecem essa alternativa à morte por câncer? "Nunca se sabe, você pode ser atropelada por um ônibus amanhã!", dizem, alegrinhas). Os médicos me garantem mais tempo e bem-estar com tratamentos, injeções e transfusões. Com sorte, ainda tenho uns bons meses pela frente, mas, no geral, o prognóstico é curto.
A verdade é que eu estava mais preparada para morrer do que para voltar a namorar – e, pelo que muita gente me disse, sendo uma mulher solteira com mais de 40, era bem provável que já estivesse morta mesmo.
A morte não é um conceito abstrato; vivo de um momento a outro, de uma semana para a outra
Logo depois do rompimento, eu não quis sair com ninguém. Sabia que tinha um tempo limitado para passar com gente querida antes de ter uma recaída; por que haveria de querer conhecer estranhos? Apesar disso, os amigos continuaram me forçando, muitas vezes literalmente – como na Oktoberfest de Copenhague, onde o amigo que eu estava visitando declarou: "Você não pode permitir que sua última experiência seja ruim desse jeito", e me colocou no meio de um bando de dinamarqueses bêbados, vestidos de roupa típica, dançando e cantando Time of My Life.
Ao voltar para casa, balancei; um dia, vi meu ex em um show com a mulher por quem ele me trocou. Não fiquei triste nem com ciúmes, só aliviada por ser ela e não eu tirando o cartão de crédito para pagar as bebidas dele. Era hora de prosseguir.
Uma amiga me ajudou a fazer a inscrição em um aplicativo de relacionamentos; outra, aquela que se tornaria minha "guia virtual", me ajudou a bolar meu perfil e a escolher as fotos. "O cara tem uma foto com o Bill Murray", comentei quando usei o recurso pela primeira vez. "O Tinder está lotado de fotos do Bill Murray", respondeu ela, com conhecimento de causa.
Desde que meu câncer foi diagnosticado, há seis anos, recebi veneno na veia, tive tubos presos ao pescoço, retirei órgãos, fiz sessões de radiação. Perdi a conta de quantas vezes raspei a cabeça e cuspi pedaços do esôfago. Os médicos me fizeram uma punção lombar e futucaram minha medula óssea com uma agulha – mas foi a perspectiva do encontro com um estranho que me encheu de pavor. "Preferia estar coletando material para biópsia", foi a mensagem que enviei do celular para as amigas antes de sair para meu primeiro encontro em mais de uma década.
Lá fui eu. E foi legal; divertido, até. Tanto que resolvi insistir e me aventurar um pouco mais.
Depois de um encontro ótimo, a realidade me caiu como uma bomba: posso oferecer o presente, mas não uma esperança de futuro. "Você não sabe", uma amiga rebateu. "Sim, porque posso ser atropelada por um ônibus amanhã?", respondi, com um sorriso fraco. Em questão de um mês, eu tinha me presenteado com um olho roxo, lascado um dente e raspado o joelho. Naquela manhã, tinha saído da calçada sem olhar e quase fui pega em cheio por uma van. Acabar morrendo por causa de escorregão no chuveiro já parecia bem mais provável do que pelo câncer.
"Não, porque você pode continuar reclamando de encontros furados até os 90 anos", respondeu ela.
Conforme o tempo foi passando, estabeleci minhas próprias regras, só para burlá-las depois. Pago minha própria despesa porque permitir que a outra pessoa o faça reforça o clima de transação comercial. Além do mais, depois de anos pagando minha parte e a do ex, ainda saio no lucro. E não como nada no primeiro encontro, porque a cena não é lá muito bonita.
Acontece que, depois do drinque inicial, alguém me convidou para jantar e insistiu em pagar a conta. Eu lhe disse, enquanto devorava um peito de pato feito um rei medieval, que não comia cordeiro porque é um animal muito fofo; nem polvo, porque é muito inteligente; mas que não tinha problema em comer pato porque eles davam para ser necrófilos. "Se você pensar bem", disse eu, levando o garfo a um pedaço de carne coberto de molho, "ser comido é realmente a segunda pior coisa que pode acontecer com eles depois de mortos".
Sou ótima de papo nesses encontros. Câncer? Necrofilia? É só escolher o tema.
- Estamos nos iludindo com a medicina de precisão? (artigo de Liz Szabo, publicado em 14 de setembro de 2019)
- Impacto socioeconômico do câncer de pulmão (artigo de Gustavo Werustky, publicado em 11 de dezembro de 2018)
- Impacto nos pacientes com câncer no tratamento via supercomputador (artigo de Daniela Masi, publicado em 6 de julho de 2017)
O que uma pessoa com câncer terminal está fazendo em um aplicativo de relacionamentos? Imagino que seja porque quero o que todo mundo quer – alguém com quem goste de passar o tempo, para me dizer que sou bonita. Só que é por um período mais curto. Não tenho expectativas de que alguém esteja comigo quando ficar ruim para valer de novo. Meu último relacionamento fez com que eu me sentisse um estorvo. O fato é que ele era quem tinha sorte por estar comigo, mas só agora percebo isso.
Eu tinha (e ainda tenho) medo de engatar algo e ferir a outra pessoa. Parece meio egoísta, mas, quando eu gosto de alguém, caio de cabeça. Os outros podem achar que é por causa do câncer, mas sempre fui assim, desde a primeira vez que saí com meu primeiro namorado, aos 14 anos, em 4 de julho de 1992, para ficar sentada na caminhonete estacionada em uma clareira, vendo os fogos de artifício que espocavam no SeaWorld ali perto.
Eu tinha de ir para casa, mas não antes de ganhar meu primeiro beijo, e, quando fizemos um desejo para a estrela cadente, surgiu a oportunidade de que precisava. "Sabe o que tenho vontade de fazer todo ano?", comecei, me referindo à queda que tinha por ele desde que entrara na minha classe do nono ano, no primeiro dia de aula, usando uma camiseta do Guns 'n' Roses. "O quê?", ele perguntou. "Beijar você", foi minha resposta. E nos beijamos sob os fogos.
Quando, outro dia, um cara me mandou uma mensagem para saber o que eu gostaria de fazer no nosso encontro seguinte, escrevi: "Espero não estar sendo muito apressada, mas uma coisa que eu queria fazer é beijá-lo em algum outro lugar que não seja uma esquina chuvosa". Pelo visto, sou aos 40 a mesma que era aos 14.
O câncer me deixou com cicatrizes, tatuagens de radiação e um Mediport, mas do relacionamento ruim há marcas que nem sempre consigo perceber. Eu me desculpo excessivamente, como na ocasião em que derrubei o guardanapo do meu companheiro de mesa. "Tudo bem", ele garantiu, me olhando de um jeito estranho. "Não vou gritar com você." Foi então que percebi eu estava esperando que ele me passasse um sabão, como meu ex teria feito.
O cara por quem violei algumas das minhas regras conseguiu fazer com que eu alterasse outras mais: graças à sua insistência, eu me vi dançando, mal e relutantemente, mas rindo o tempo todo; peguei sua mão à mesa do restaurante; roubei beijos seus em público. Às vezes nem eu me reconheço mais.
Estou muito feliz e muito triste ao mesmo tempo.
A morte não é um conceito abstrato; vivo de um momento a outro, de uma semana para a outra. Vivo intensamente, mas sempre fui assim. Desde o início do novo tratamento, consigo até andar por aí e muitas vezes nem pensar no câncer. E tenho de concordar com o ex, porque é muito bom. Desde aquele primeiro encontro, em 1992, sempre quis encontrar alguém que me fizesse sentir que parte da minha vida estava arranjada. Só que, dos 28 aos 40, eu só me arranjei. E pronto.
Quando meu ex se despediu com um beijo, no dia em que rompemos, pensei que aquela seria a última vez que estava sendo beijada por um homem. É muito bom estar errada sobre alguma coisa, para variar.
Josie Rubio é escritora e editora.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura
Deixe sua opinião