Ao julgar o HC 399.109, o Superior Tribunal de Justiça acolheu a tese que punir o não pagamento do ICMS com a pena privativa de liberdade seria uma maneira eficiente de incentivar o contribuinte a recolher pontualmente os valores devidos. Para além das análises próprias ao Direito Penal e ao Direito Tributário, criminalizar o mero inadimplemento tributário traz, em realidade, incentivos que operam na contramão de princípios e objetivos constitucionais como a livre iniciativa e o fomento às condições de pleno emprego.
Pode-se afirmar que há quatro categorias principais de inadimplentes tributários: o sonegador lombrosiano, o empresário em dificuldades, o inadimplente estratégico e o objetor de consciência. Colocaremos este último de lado.
Sempre disposto a correr riscos de grande monta, o sonegador lombrosiano conscientemente burla as obrigações fiscais via ocultação, dissimulação ou fraude. Trata-se de um criminoso, no sentido jurídico próprio do termo. Já o empresário em dificuldades normalmente vivencia situação trivial, comum a qualquer pessoa que se disponha a empreender. A ruína empresarial não deveria acarretar riscos à liberdade do indivíduo nem lançar o empreendedor ao opróbio.
Descrever o inadimplente estratégico, contudo, exige um pouco mais de esforço. O inadimplente estratégico tende a aceitar riscos maiores para poder “jogar” com o sistema, permanecendo no limite entre a legalidade e a ilegalidade. A rigor, em geral a conduta desse tipo de inadimplente é lícita. Porém, devido à intensidade quantitativa ou qualitativa, o conjunto das suas condutas acaba causando danos ao Erário e a outros contribuintes, pelo viés da concorrência desequilibrada. Para enfrentar essa ambivalência, caberia ao legislador desenhar mecanismos que estabelecessem os critérios objetivos para caracterização do “inadimplente estratégico”. E sempre uma resposta típica de regime tributário, patrimonial, e nunca penal. A solução é imperfeita, por criar seus próprios desafios e pender à inconstitucionalidade, mas certamente é menos prejudicial que a criminalização proposta pelo STJ.
A criminalização mira o inadimplente estratégico, deixa escapar o sonegador lombrosiano e acerta o empresário em dificuldades.
Segundo estudo do Sebrae, o Brasil apresenta um alto índice de mortalidade precoce das empresas. A carga tributária em moeda e em trabalho para atender às exigências fiscais também é muito alta, batendo recordes mundiais, de acordo com pesquisas do Banco Mundial. Além das disfuncionalidades legais, provavelmente boa parte do insucesso empresarial se deve à falta de profissionalismo e de preparo dos candidatos a empreender. Pode-se conjecturar que o grupo mais importante de inadimplentes é formado por aqueles que querem pagar, mas não dispõem de meios para fazê-lo, e por isso mesmo se veem diante do dilema de deixar de pagar e ir à prisão, ou de deixar de declarar e também ser conduzido às “masmorras medievais” do nosso sistema penitenciário.
Ao visar os empresários em dificuldade, especialmente os que são avessos ao risco, a criminalização do inadimplemento cria incentivos para que o indivíduo deixe de empreender, ou opte por postura de cautela injustificável para poder fazer frente a uma consequência extraordinária, a prisão, desencadeada por um fato ordinário na perspectiva dos negócios, o inadimplemento. Com isso abre-se o caminho ao by-pass favorito da nação, o jeitinho, ainda que virtuoso, para corrigir o erro no desenho da política de combate ao inadimplemento.
A isso tudo se soma a natureza absurdamente exacerbada das multas previstas na legislação tributária, que de um passe de mágica podem levar um débito inicialmente banal, corriqueiro, a cifras que às vezes correspondem a mais que o dobro do valor da dívida original. A eficácia desse tipo de punição é duvidosa, não apenas porque o Judiciário às vezes reduz os respectivos valores, mas principalmente em razão da prejudicial expectativa de que, mais cedo ou mais tarde, remissões, anistias e parcelamentos diminuirão o peso da punição. Novamente, o sonegador lombrosiano e o inadimplente estratégico são os que levam vantagem nesse cenário, por serem mais resilientes ao risco exacerbado. Já o empreendedor que deseja cumprir à risca a legislação se verá à margem, e certamente será injusto criticá-lo por ao final optar por uma atividade de menor perigo, como empregado, funcionário ou servidor.
A aparente situação ótima para o Estado-primitivo é a situação desastrosa para o Estado desenvolvimentista e para a própria sociedade. Faria mais sentido e seria mais eficiente desenhar um modelo para abordar o quadro específico do inadimplente estratégico, sem sacrificar o empresário em dificuldades num suposto altar do interesse público e da alegada defesa da concorrência.
Thiago Buschinelli Sorrentino, mestre em Direito Tributário e professor do IBMEC/DF. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal por dez anos. Autor do estudo "Consequências da criminalização objetiva do inadimplemento tributário ao empreendedorismo".
Fim do ano legislativo dispara corrida por votação de urgências na Câmara
Teólogo pró-Lula sugere que igrejas agradeçam a Deus pelo “livramento do golpe”
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Frases da Semana: “Alexandre de Moraes é um grande parceiro”