O leitor se lembra da manifestação que ocorreu no dia 26 de maio do corrente ano? Não se passou tanto tempo assim, foram três meses, mas, neste atípico Ano Um da Nova Era, pareceu um ciclo quase milenar.
Na primavera daquela manifestação, aquela apoteótica manifestação convocada por setores de apoio ao governo Bolsonaro, a “extrema-imprensa” e algumas lideranças políticas identificaram as “digitais” de membros do Planalto. Após o abandono das pautas iniciais de “fechamento do Congresso Nacional” e intervenção militar, entre outras barbaridades que tornaram-se habituais, as novas reivindicações foram a aprovação da reforma da Previdência (“Reforma de 1 trilhão!”, conforme alguns cartazes), a aprovação do pacote anticrime do ministro Sergio Moro, a votação da Medida Provisória 870 e a criação da CPI da Lava Toga, atingindo ministros de tribunais superiores.
A manifestação foi um sucesso e o presidente Bolsonaro afirmou: que "hoje é o dia em que o povo estará nas ruas", em uma "manifestação espontânea", como um recado "para aqueles que, com suas velhas práticas, não deixam que o povo se liberte". Belas palavras para uma manifestação patriótica, mas o que aconteceu depois disso?
O próprio presidente da República retirou completamente o Coaf de qualquer interferência e influência do Ministério da Justiça
Houve a aprovação da reforma da Previdência na Câmara, após exaustivo debate e enorme força dos deputados federais, notadamente blocos e parlamentares taxados como “não adesistas” ao governo diurno, mas não sem antes que o presidente em pessoa operasse um lobby, apresentando uma emenda para aliviar a reforma em prol das carreiras policiais – ou seja, o próprio presidente da República desidratou sua própria reforma, abrindo um precedente para que fosse incluída posteriormente outra categoria, a dos professores (“farinha pouca, meu pirão primeiro!). Resumo: o presidente prejudicou a reforma ao operar um perigoso lobby particular, permitindo que outros setores e categorias apresentassem práticas idênticas, ficando aquém da reforma de R$ 1 trilhão exigida pelos manifestantes.
O pacote anticrime – contido nos projetos de lei 881/2019, 882/2019 e 38/2019, apresentados em 19 de fevereiro na Câmara dos Deputados –, que àquela época marchava a passos vagarosos, agora finalmente está ancorado, simplesmente parado, com o beneplácito presidencial. Vejamos o que Bolsonaro afirmou em uma de suas lives deste agosto: “Sabemos que uma pressão em cima da reforma dele [Moro] agora atrapalha um pouco a tramitação dessa reforma mãe [a da Previdência] nossa. Eu tenho falado com ele, [pedindo] um pouco mais de paciência”. O ministro permaneceu impávido; uma mudança drástica, quando percebemos uma clara inanição política, comparada com o seu outrora comportamento diante de outras manifestações em seu apoio ocorridas em 30 de junho, quando, em tom quase onisciente (e onipotente), disse “eu vejo, eu ouço".
A temível criação da CPI da Lava Toga, aquela que prometia tanto, não ocorreu. Uma das maiores deserções ocorreu pelas mãos do senador Flávio Bolsonaro, inerte diante da expectativa dos manifestantes, cujos claros problemas judiciais (sem obstar a falta de explicações plausíveis aos seus eleitores) o impediram de assinar a CPI. Coincidentemente, uma ocasional decisão judicial o favoreceu (provisoriamente, é claro, em caráter liminar!), impedindo a “sanha persecutória" do Ministério Público. Em tempos remotos, não havia óbice a tais práticas do MP da parte do então deputado estadual; realmente houve um despertar garantista deste insigne senador.
E o Coaf? A pauta "Coaf com Sergio Moro” não vingou. O órgão foi mantido no Ministério da Economia, e até operava sob controle indireto de Moro, que tinha um indicado seu no comando, mas Bolsonaro expediu a MP 893/2019 em 19 de agosto. O próprio presidente da República retirou completamente o Coaf de qualquer interferência e influência do Ministério da Justiça, vinculando-o ao Banco Central. Outra das inovações ocorreu em sua composição, ao permitir a ocupação dos cargos de livre nomeação e provimento, bem como retirar a indicação do Ministério da Justiça. Curiosamente, o Coaf havia se tornado alvo de críticas do presidente em razão de vazamentos do caso envolvendo seu filho Flavio. Uma crítica que não ocorria quando os “alvos” de tal expediente eram seus adversários, mas certamente é só mais uma frívola coincidência que envolve um despertar constitucionalista de nosso presidente da República.
Eis o breve resumo do que foi exigido por inúmeros apoiadores, parlamentares da base do presidente Bolsonaro e a miríade de influenciadores digitais alinhados ao governo. Mas o que ocorreu depois foi um escárnio com os manifestantes, um insulto à sua inteligência e um acinte às expectativas alimentadas e insufladas pelos atores acima nominados. Nesta era do debate político parco de argumentos, necessário faz-se recorrer a um conhecido jargão da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que tornou-se um meme político: “Mas o que é isso? Mas o que é isso?”
Juliano Rafael Teixeira Enamoto é procurador da Câmara Municipal de Sapezal (MT).