Na atual revolta dos indignados de alcance mundial, como parece desejar a mão invisível das manifestações, resta a perplexidade e a paralisia da política convencional e de seus mecanismos de contenção
Enquanto marchas de indignados irrompem em centenas de megacidades, a mobilizar milhões de pessoas e a irradiar-se em apelo global, com velocidade on-line e amplitude da internet, a busca para explicações do fenômeno são frustrantes. Assim, uma bastilha universal vai se delineando, sem que haja ainda um rei ou o seu pescoço. Os motivos da indignação como demonstrados são de fato tão genéricos quanto fragmentados, na raiva incerta dos oprimidos.
Depois da primavera árabe, será a vez do inverno do Hemisfério Norte, que se aproxima com dificuldades inéditas para governos desacreditados e enfraquecidos em recorrentes crises de insolvência, alguns ao borde da bancarrota. As perdas de direitos trabalhistas e de conquistas sociais são inevitáveis, com cortes de gastos brutais. Afinal, há que salvar bancos, ainda que com fundos remanejados da área social e de programas de bem-estar e de inserção de desfavorecidos. Embora o pano de fundo pareça muito claro, as manifestações são nebulosas e estão longe de permitir respostas políticas imediatas e consequentes.
As mensagens que pairam no éter incerto das redes sociais identificam o inimigo comum nas elites financeiras, atreladas aos partidos políticos e aos governantes. É o que consta, por exemplo, no site 15october: "O poder trabalha em proveito de poucos, a ignorar tanto a vontade da maioria quanto o preço humano e ambiental que pagamos. Essa situação intolerável há que parar". Na página Occupy Wall Street, o tom é o mesmo: "O que temos em comum é que somos 99% e não iremos mais tolerar a cobiça e a corrupção da minoria". Na Itália, o programa é assim resumido: "Ocupação de praças por milhões de pessoas que não querem mais pagar pela crise econômica e social no lugar daqueles que a causaram: o poder político, econômico, industrial e financeiro".
Na experiência europeia de organizar protestos, a partir dos acampamentos da Porta do Sol, na Espanha, que desemprega metade de sua população jovem, sem a ação de qualquer partido político, não houve lideranças ou porta-vozes permanentes, quanto menos instância central para coordenar ações. Apenas algumas palavras de ordem comuns, como democracia real já, sem que se saiba desde os gregos o que exatamente isso pode significar. Foi ainda no calor madrilenho que se lançou o slogan que passou ao mundo, em língua e em apelo global: "Yes, we camp", sim, nós acampamos, na esteira da poderosa retórica que venceu a última eleição à Casa Branca.
Na literatura, o grande elaborador da indignação como categoria do sentir humano foi o Nobel de literatura de 1946, Hermann Hesse, que trabalhou o tema com profundidade e com percuciência: a indignação pressupõe objeto, sem o que se perde como devaneio ou sublimação. E mais, na ótica do pai de Demian, o que não faz parte de nós não pode incomodar-nos com profundidade, a ponto de poder gerar as verdadeiras lágrimas de indignação. Também Hannah Arendt a sua vez abordou o tema, sob o ponto de vista da filosófica política, motivada pelos horrores do nazismo e dos totalitarismos, indignada pela banalidade do mal e pela voragem da violência radical. Para ela, a suma indignação era causada pelo fanatismo político que desumanizava e embrutecia o homem precário: "assassinos totalitários são os mais perversos, porque não se importam se estão vivos, se jamais viveram ou se nunca nasceram".
Na atual revolta dos indignados de alcance mundial, como parece desejar a mão invisível das manifestações, sem que se possam atender intentos tão díspares como a contenção dos preço de aluguéis em Tel Aviv, a brutalidade policial em Manhatan, ou o fim do bipartidarismo espanhol, resta a perplexidade e a paralisia da política convencional e de seus mecanismos de contenção. Se George Orwell preconizava em seu antológico romance 1984 que a tecnologia da informação seria para controlar e amordaçar as massas, com o repulsivo Big Brother a serviço do totalitarismo e da extinção das consciências, algo felizmente saiu errado.
Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é professor titular do Instituto Rio Branco e presidente do Tribunal Permanente do Mercosul.
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