Tem um caso que meu marido me conta há quase quinze anos, ocorrido pouco depois de as forças dos EUA terem invadido o Iraque. Em uma reportagem, soldados americanos apareciam batendo de porta em porta com cães farejadores de bombas para tentar convencer os moradores de Bagdá a adotar um animal de estimação bem treinado.
Para muitos iraquianos, o cachorro é considerado impuro, e aquelas tropas estavam tentando fazê-los repensar esse conceito: a capital seria mais segura se houvesse mais animais espalhados pelos bairros, soando o alarme toda vez que o inimigo tentasse plantar uma bomba à beira de alguma estrada à noite. Sem contar que é um bicho que ama incondicionalmente.
O iraquiano da história olhou para o jovem fardado e deu de ombros. “Tá, e aí você seria amado por um cachorro.”
Meu marido acha essa passagem hilária porque lhe lembra dos sulistas de cidade pequena e os interioranos entre os quais cresceu, e também porque é totalmente oposta à atitude nos bairros residenciais americanos, onde há até carrinho para levar o cachorro para passear, creche para os animais e especialistas como pneumologistas caninos. Os militares iraquianos não teriam mais sorte tentando convencer os moradores dos subúrbios de Nashville a desistir de seus cães do que os americanos de fazer os iraquianos convidarem um cão a entrar em suas casas.
Para se ter uma ideia da intensidade e profundidade do nosso relacionamento com os cachorros, vejam o que aconteceu quando Emma, nossa dachshund de quinze anos, morreu no mês passado: três amigos trouxeram flores; uma, chocolate. A outra, uma torta de morango caseira. Outro, um churrasco inteiro para o jantar e um poema que ele mesmo escreveu. Duas garotinhas que a adoravam fizeram castiçais. (“Preciso de um pouco d’água, cola, um vidro e muito glitter”, disse a mais nova, de sete anos, para o pai.) No Facebook, 158 pessoas nos enviaram mensagens de condolências.
Para muitos iraquianos, o cachorro é considerado impuro, e aquelas tropas estavam tentando fazê-los repensar esse conceito
As demonstrações de carinho me lembraram dos dias que se seguiram à morte repentina de minha mãe, quando tive a impressão de que todo mundo que conhecia me levara flores, comida e notinhas meigas. Pode parecer desrespeitoso comparar a perda de um animal, mesmo o mais querido, à de uma mãe, mas faz todo o sentido no aspecto emocional. Todo mundo tem mãe, e a dor profunda de perdê-la é compreendida instintivamente, mesmo entre aqueles cujas progenitoras estão vivas e bem de saúde. Todo mundo que já amou um cachorro sabe também a dor dessa perda, mesmo que nunca tenha conhecido o animal por quem se está chorando.
Na verdade, Emma era da minha mãe, ou seja, perdê-la é luto dobrado. Morro de saudade do jeito inimitável com que fazia desaparecer sanduíches, subia nas estantes, xeretava na minha bolsa, abria os armários, roubava minha vitamina e estava sempre sorrindo. Mesmo quase cega, completamente surda e parcialmente paralisada por causa da idade, ela queria porque queria ficar ao meu lado, empurrando a caminha até ficar bem debaixo dos meus pés enquanto eu trabalhava.
Sinto saudades, mas também falta de cuidar dela – de ter de sair correndo para a emergência pelo menos três vezes por ano por causa de algum tipo de intoxicação, que podia ser com bombom de chocolate ou veneno de rato. De medicá-la diligentemente, duas vezes por dia, o tempo todo empurrando as cadeiras para debaixo da mesa para evitar que subisse na mesa e de lá pulasse direto, sem proteção nenhuma. Proteger Emma de si mesma era como se eu ainda estivesse cuidando de minha mãe, anos depois de ela já ter partido.
Aquela cachorrinha causava uma exasperação e uma diversão sem nome para a minha mãe solitária. Emma levava sua bolsa para baixo da cama, para aquele cantinho que ninguém conseguia alcançar, mesmo deitando no chão. Bastava minha mãe se levantar da cadeira meio minuto que lá estava Emma em seu lugar, não só tomando o café que tinha ficado na mesinha lateral como acabando com o mingau de aveia também. Metade das histórias que minha mãe contava aos netos na hora do jantar era sobre as minhas peripécias quando pequena. A outra metade, sobre Emma.
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Um cachorro ama alguém da mesma forma que uma pessoa ama a outra ainda enlevada pela paixão recente: com uma concentração intensa, inabalável, com atenção ao menor movimento, ignorando as imperfeições, desejando apenas ficar perto, ficar junto, tocar e tocar e tocar. Para minha mãe, que nunca deixou de sentir a falta de meu pai e que devia se sentir à margem das vidas tão ocupadas dos filhos, foi uma verdadeira bênção ser amada por aquela cachorrinha.
Toda vez que ia visitar minha irmã ou meu irmão, deixava Emma comigo. Durante vários dias ela ficava sentada diante da porta dos fundos, a mesma que minha mãe usava toda noite quando vinha jantar conosco. E a única da casa que tem o visor bem baixo, de modo que ela podia ver o que se passava lá fora. Pois Emma se sentava ali para esperar. E esperava e esperava – afinal, tinha uma reserva infinita de paciência e tempo – até que, três dias depois, uma semana, no máximo, minha mãe voltava para pegá-la.
Duas semanas depois do funeral, Emma, que tinha saído comigo, desapareceu. Minúscula e toda manchada, era uma cachorra determinada e invisível: nunca vinha quando a gente chamava e conseguia desaparecer por baixo dos arbustos mais rasteiros, por trás dos galhos mais diminutos. Virei o quintal de cabeça para baixo à sua procura. Quando finalmente pensei em dar uma espiada na casa de minha mãe, do outro lado da rua, encontrei-a na porta de trás, pulando e pedindo para entrar. Estava arranhando com tanta urgência e há tanto tempo, que tirou a tinta do batente.
É isso que significa ser amado por um cão.
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