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Comecei a trabalhar em um abrigo para vítimas de violência doméstica em outubro de 2015, em parte por causa da minha própria história: eu estivera em um relacionamento abusivo quando era mais nova. Queria ajudar as mulheres que estavam em situações como a minha, mas também queria entender melhor a questão, ou seja, como uma dinâmica tóxica de poder e controle se desenvolve nas relações e como ela pode ser anulada. Foi por isso que, ao longo de dez meses em 2017, passei uma parte do meu tempo no abrigo, e outra assistindo a aulas de um curso de intervenção para agressores oferecido pelo governo.

Segundo Michael Paymar – um dos autores, no fim dos anos 1980, do Currículo Duluth, um dos mais usados como base desse tipo de programa –, esse recurso existe desde o fim da década de 1970, surgido do que então era conhecido como o “movimento das mulheres agredidas”. Fazia parte da iniciativa que tentava explicar por que os homens batem. “Qual a intenção por trás da violência? Qual foi o sistema de crenças que levou a ela?” Atualmente, os especialistas calculam que haja de 1,5 mil a 2 mil dos chamados “programas de intervenção para agressores”, ainda que os métodos variem bastante.

E eles podem ser polêmicos: as provas de sua eficácia não são unânimes e muitos alegam que a verba dedicada a eles deveria ir para iniciativas que apoiam e protegem as vítimas diretamente. Pior ainda, há quem tema que essas aulas deem uma falsa esperança às vítimas, tendo como resultado a permanência delas na relação. Na melhor das hipóteses, porém, a intenção é alterar fundamentalmente a dinâmica de poder e controle.

Fui à minha primeira aula no início de janeiro. Ao entrar, percebi que havia sete homens sentados na sala. Um deles, Jake, de 40 anos, que depois eu conheceria melhor, disse que tinha tentado matar a companheira; outros revelaram ter sido indiciados por conduta imprópria. Quase todos estavam ali por ordem judicial; quase todos entraram na sala, no primeiro dia, negando a necessidade do curso, culpando a parceira, minimizando o próprio comportamento e se comparando favoravelmente a outros agressores.

Toda vez que esses homens xingaram suas companheiras, bateram nelas ou as intimidaram, estavam tomando uma decisão

“Eu a agarrei pelo pescoço e lhe dei um soco no tampo da cabeça. Depois disso, ainda discutimos, brigamos, eu a agarrei pelo cabelo e a arrastei pelo campo, em direção ao mangue. Tinha intenção de matá-la e enterrá-la lá. De verdade. Aí tirei a faca do bolso e disse que ia cortar sua garganta, mas acabei desistindo. Foi basicamente o que aconteceu. A coisa toda durou mais ou menos uma hora. Um lance longo, que parecia não ter fim. Terrível. E meus filhos viram. Foi péssimo.” (Jake)

Ao longo do programa, que compreende 24 sessões, os homens fizeram vários exercícios: escreveram cartas para mostrar que compreendiam a perspectiva das companheiras e as leram em voz alta; fizeram “caminhadas de confiança”, com os olhos vendados, guiados por outros dois homens; falaram de privilégio, masculinidade e da infância. Dominick, de 27 anos, falou da mãe, violenta, e como se identificou com o constrangimento da namorada quando cuspiu nela. Teddy, de 21, pediu exemplos de opções de reações saudáveis, dizendo que batia na namorada porque era a única forma que conhecia de se manifestar. Durante o curso, chegou a ser detido novamente por agressão sexual. “O que você acha de homem que bate em mulher?”, perguntou-me ele várias vezes.

“Tive uma infância difícil, sabe? Mas sei que não é desculpa para eu ter cometido crimes e feito o que fiz. Sei que não é certo. Minha irmã passou pelas mesmas coisas e não fez nenhuma besteira, nunca roubou nada. Não justifica, eu sei. Então. Sei lá. Mas minha mãe é uma pessoa horrorosa. Se eu tivesse de descrevê-la, diria que é a pior pessoa que já conheci.”

“E nem conto isso para muita gente porque é meio que... constrangedor, sabe? Foi o que minha namorada disse na queixa que prestou, que ficou constrangia por eu ter cuspido nela. Entendi muito bem o que ela quis dizer... Sentir-me embaraçado porque alguém fez alguma coisa errada comigo.” (Dominick)

“Quando eu era moleque, se respondesse, ou fizesse alguma coisa errada, apanhava. Já disse isso na classe – apanhava muito, foi a única coisa que conheci na infância. Esse é meu grande problema. É basicamente um dos meus únicos problemas, aliás. E tentei falar sobre isso na classe outro dia, mas ela não conseguiu me explicar o que posso fazer a não ser bater. Acho que aí um dos meus maiores problemas estaria resolvido. Porque é um problemão.” (Teddy)

Carlos Ramalhete: Masculinidade tóxica (publicado em 14 de fevereiro de 2019)

Nossas convicções: A valorização da mulher

As aulas envolviam muita conversa sobre os filhos. Jake, por exemplo, percebeu que o seu, que na época tinha dois anos, começou a chamar a mãe de “vadia” porque ouvira o pai usar a palavra.

Assistir às aulas era complicado. Tinha dia em que eu chegava, depois de ter ido ao abrigo no dia anterior, e passado horas ouvindo histórias terríveis de sobrevivência, para escutar aqueles homens minimizando ou negando situações, e me sentia desesperançada e revoltada. Outras vezes, porém, eu os via admitir a responsabilidade pelos próprios atos e falar sobre o que fizeram, em vez de lamentar o que “ela” fez de errado ou como “ela” os provocou. Testemunhei algumas viradas – como a de Victor, de 35 anos, que fazia questão de chamar a atenção da classe de volta para a violência doméstica quando a conversa saída do tema; ou a de Tyler, de 26 anos, que dizia aos recém-chegados como sua atitude em relação à classe mudara da indiferença para o reconhecimento. Vi os alunos que estavam ali há mais tempo chamar a atenção dos novatos por usarem palavrões ou linguagem inapropriada para descrever suas parceiras.

“No Exército, eu era responsável por sete soldados; era direto, violento. Somos treinados para isso. Claro que se não deve levar esse comportamento para a vida civil, especialmente com alguém que você ama. Fui aprendendo aos poucos com meu filho. Sou bem direto com ele, sabe, mas suavizo muito. Uso de tato, de empatia, coisas que nunca fiz com essa garota, com minha ex-mulher. Foi só quando comecei essas aulas que percebi o nível inacreditável de abuso verbal que pratiquei a vida inteira, com todas as mulheres com que me relacionei. Minha definição do que é ser homem mudou completamente neste último ano. E o pior é que nem sei se me encaixo nela ainda.” (Tyler)

“Assim que a briga acaba, eu me sinto péssimo. Não levo a melhor por xingar as pessoas ou por meter a mão em alguém. É uma situação em que todo mundo sai perdendo. E fico muito chateado. Ainda estou tentando aprender. Bom, pelo menos estou disposto; faço esse curso para tentar me tornar uma pessoa melhor. Mas não posso culpar meu padrasto e minha mãe por tudo porque, no fim das contas, tomo minhas próprias decisões e ninguém deveria me deixar descontrolado, por pior que seja a situação. Se fico bravo, não posso controlar ninguém a não ser eu mesmo.” (Victor)

No total, os sete homens concordaram em se deixar fotografar e entrevistar (não uso seus nomes completos aqui para proteger a privacidade de suas vítimas), sendo que praticamente todos disseram que o fizeram porque querem que suas palavras cheguem aos mais jovens. Rodney, de 51 anos, se disse aberto a receber conselhos, mas somente de alguém que tenha passado pela mesma experiência. Seu recado? “Se estiver nesse tipo de relacionamento, cara, você tem de sair. Imediatamente, antes que algo ruim aconteça, tipo matar alguém.”

Há a necessidade de um espaço onde se ensinem comportamentos saudáveis e se desenvolva um senso de responsabilidade

Pelo menos dois, na época de nossas entrevistas, deram a entender que tinham medo de se relacionar novamente por medo de repetir o comportamento abusivo. “Se perder a cabeça de novo, será que vou controlar a língua?”, questiona Tyler. A princípio, ele foi acusado de tentativa de estrangulamento e agressão, mas insiste em dizer que a única agressão que praticou foi verbal, e as queixas foram retiradas. No ano passado, porém, sofreu nova denúncia de violência, envolvendo uma parceira diferente e, dessa vez, preferiu não contestar.

A violência doméstica é uma escolha. Toda vez que esses homens xingaram suas companheiras, bateram nelas ou as intimidaram, estavam tomando uma decisão; entretanto, alguns temiam não saber ou não poder agir de outra forma.

De minha parte, tive de fazer um esforço consciente para me abrir às experiências masculinas, ao mesmo tempo que me mantinha consciente do que suas parceiras passaram; em minhas entrevistas e fotografias, eu quis entendê-los, mas não os valorizar. O trabalho no abrigo foi um contrapeso ao curso. Difícil lidar com as duas verdades: esse homem, no geral, sofreu violência em casa, quando pequeno, e gerou violência em seu próprio lar, depois de adulto, mas uma coisa não justifica a outra. Kerry Jung, a terapeuta que trabalhou com os agressores, ela própria sobrevivente da violência, me disse que teve de encarar pressupostos complicados antes de começar a entender que, ao trabalhar com um homem violento, também estava ajudando a companheira dele. “Estou ajudando a família inteira e a próxima geração, se conseguir afetar as crianças, impedindo os meninos de ser abusivos e as meninas, de entrar em relacionamentos em que podem se tornar vítimas”, diz.

Segundo Ed Gondolf, que há tempos estuda esse tipo de programa, é difícil avaliar até que ponto ele é eficiente. Em muitos casos, os homens desistem pelo caminho ou perdem contato com os estudiosos que querem fazer entrevistas de acompanhamento. Sua própria pesquisa indica que 49% dos homens que participaram de um programa desse tipo, ainda que não necessariamente o tenha concluído, voltaram a agredir após quatro anos. Entretanto, a mesma pesquisa mostrou que uma grande parte dessas investidas ocorreram nos seis primeiros meses, talvez antes de as intervenções terem tido tempo de fazer efeito. Depois de quatro anos, de acordo com o acompanhamento, cerca de 90% não tinham agredido as parceiras fisicamente no ano anterior.

Flávio Gordon: Salsichas acadêmicas: o caso do dossiê sobre lesbocídio

Leia também: Um retrato de violência familiar (artigo de Anne Finger, publicado em 17 de fevereiro de 2019)

“No fim das contas, eu me sinto culpado porque meu filho acabou afetado pelo meu problema. Fico pensando, tentando lembrar se a tratei mal na frente dele. Gostaria muito de dizer que não, mas é bem provável que tenha feito ou dito algo. Será que vai ter uma opinião diferente sobre a mãe porque ouviu o pai falando um monte para ela?” (Dakota)

Ao longo do meu trabalho nessa história, ouvi pontos de vista conflitantes: como a companheira de Jake, por exemplo, que reatou a relação após alguns anos, disse que ele nunca tentou minimizar o que lhe fez e vê uma diferença gritante em seu comportamento atual. “Dá para perceber que aprendeu a se comportar de forma diferente no curso, tipo: ‘Olha, aqui estão os meios para não repetir a dose, e, se repetir, tem de fazer isso e isso’”, conta ela. Já outra mulher, que desistiu do relacionamento, afirma não ter percebido nenhuma mudança positiva; diz que o parceiro continuou agressivo e manipulador após o curso.

Entretanto, uma coisa parece comum entre quem pesquisa e quem leva esses programas adiante: todos se dedicam porque viram homens fazendo progresso e acreditam que as mudanças são possíveis. Ouviram vítimas afirmando se sentir mais seguras, e homens expressando empatia. Seria ruim achar que esse é o caso de todo homem, claro, pois nem todos têm a capacidade de mudar. Entretanto, esses ativistas/defensores concordam que há a necessidade de um espaço onde se ensinem comportamentos saudáveis e se desenvolva um senso de responsabilidade. O que aconteceria se os homens fossem instados a confrontar seus conceitos sobre as mulheres e os relacionamentos, poder e controle antes de serem forçados por uma ligação para a polícia?

Lauren Justice é fotógrafa freelance.
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