Ilustração de Dom Quixote por Gustavo Doré.| Foto: Wikimedia Commons
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Há uma passagem muito conhecida de D. Quixote, quando o padre e o barbeiro, preocupados com o coitado do engenhoso fidalgo de La Mancha, decidem irromper na sua biblioteca e queimar todos aqueles livros que, de acordo com o seu critério (deles, não do Quixote) estavam equivocados e difundiam e defendiam doutrinas muito perigosas... A lista era interminável. Tudo estava errado. Tudo era perigoso. Tudo tinha que ser cancelado pelo fogo.

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Nos tempos que correm, como já alertara há tempos Zygmunt Bauman, tudo isto ficou bem mais fácil. Apenas com um clique podemos cancelar qualquer coisa indesejada: um velho amigo, uma ex o um ex, um jornalista, uma parceira, uma professora, um político, outro político, mais um político... ou, se quisermos, um juiz e outro juiz e, mesmo até, um Presidente ou um Papa. Do jeito que é fácil cancelar, é só clicar onde estiver a tecla “delete” e pronto: o pesadelo desaparece, aquela coisa horrorosa, que tanto mal estava fazendo ao mundo, já não fará mais mal nenhum. Como o padre e o barbeiro... um livro, outro livro e mais um, tudo direto na grande fogueira do moralmente certo.

O caminho que está sendo trilhado pelas “comunidades identitárias” não está muito longe das atitudes dos sensatos cavalheiros do Quixote. Para começo de conversa, é preciso definir o que é que nos agrega, o que é que nos junta em um “nós” para, depois, com o mesmo furor do padre e do barbeiro, partir para o cancelamento de tudo aquilo que seja “eles”.

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O mais surpreendente de tudo isto é perceber como em muito pouco tempo, passamos de um polo a outro (quem tiver um pouco mais de idade, lembrará mais facilmente). Durante uma época, o “pensamento certo” era branco, hétero, cristão, liberal e conservador. E tudo o que não fosse isso, era “coisa de preto ou de índio”, “gay ou veado, que é tudo a mesma coisa”, “ateu e comuna, no mínimo”. E era por isso, e apenas por isso, porque era o contrário daquilo que nós somos, que precisava ser combatido. E era. Os anos de ferro de cinquenta anos atrás estão aí para comprová-lo.

Agora o polo mudou. Agora “nós” somos negros, assim mesmo negros, “homos”, zen ou new age, esquerdista e progressista. E tudo o que não for assim, ou não pensar assim, ou não concordar com isso, é só cancelar. É só proibir, encurralar, deletar.

O que é que está acontecendo conosco? Como é que a gente não percebe os rumos perigosíssimos que as coisas estão tomando? Mais ainda quando um ministro do Supremo Tribunal assume a sua condição de autor, vítima e juiz, simultaneamente, para decidir quem pode e quem não pode falar e, mais, o que pode e não pode ser dito!

Contudo, o que mais surpreende é o silêncio (cúmplice?) não apenas dos outros membros do tribunal, mas de tantas e tantas instituições livres e democráticas que sempre antes levantaram a sua voz para defender a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento (Lembram? Lembram de quem eram e como era? Lembram das diretas? E dos direitos humanos? E das defesas em prol da liberdade de expressão?) e agora permanecem calados, como se se tratasse do filme O silêncio dos inocentes. Que aconteceu com todos eles? Não têm receio de que a censura se instaure de novo no País? Será que a censura de “esquerda” pode e a censura de “direita” não pode? Será que pensar diferente é tão grave assim? Será mesmo que isso que “uns” chamam de ódio é mesmo o ódio de “outros”? Não será mesmo que Narciso acha feio o que não é espelho?

Toda sociedade e todo sistema que se pretenda democrático está construído nas bases do diálogo livre, pacífico e argumentativo. Não valem “carteiradas”, não vale “cala a boca”, não vale “cancelamento” nem “censura prévia”. Isso não é democrático. Isso leva o mesmo caminho que levaram todos os padres e barbeiros da História até desembocar (para não correr o risco de eu mesmo ser censurado) no filme A menina que roubava livros...

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Cada pessoa, cada grupo ou associação, cada partido político, cada jornal ou meio de comunicação pode defender livremente a sua opinião. E se alguém se sentir ofendido pode entrar na justiça que também é para isso que ela existe.

O que não pode, melhor, o que não podemos é permitir que se faça a justiça pelas próprias mãos, que alguém (ou alguns, ou uma comunidade identitária ou um partido....) se erija em detentor da verdade e que, do alto do seu poder inquisitorial (é isso mesmo: inquisitorial), impeça a alguém de expressar livremente a sua opinião, quer seja censurando, cancelando, suprimindo, cortando ou por meio de quaisquer outros métodos ou meios  violentos e ditatoriais. O que não pode, e infelizmente está acontecendo cada vez mais, é decretar, não se sabe como nem com que autoridade, que uma palavra não pode ser dita, que um pensamento não pode ser expressado, que o que até o outro dia todo mundo dizia agora não pode mais não já ser dito, mas nem sequer pensado. Como disse, isto está acontecendo quase que quotidianamente em nosso País, e mais ainda nas nossas universidades públicas. E as pessoas estão perdendo os empregos, estão perdendo a honra e estão perdendo o seu devido lugar na vida pública e na particular.

Não é justo. Isso é ditadura sim. Estamos assistindo à criação de um novo crime, como em 1984, o livre-pensar. E quem ousar pensar por si mesmo pagará com o pescoço próprio na guilhotina do moralmente correto.

Se quisermos preservar a nossa democracia e a nossa sociedade temos de defender que todos, mesmo aqueles que agora não concordam com isto que estou dizendo, possam expressar livremente a sua concordância ou a sua discordância. É para isso e por isso que muitos lutaram, sofreram e, até, morreram. Por defender a liberdade.

Gostaria de acabar com um poeta da minha terra, Miguel Henández, que na sua luta contra o franquismo, à beira da morte, deixou esses versos:

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Para la libertad sangro, lucho, pervivo.
Para la libertad, mis ojos y mis manos,
Como un árbol carnal, generoso y cautivo,
Como un árbol carnal, generoso y cautivo,
Doy a los cirujanos.
Para la libertad, siento más corazones
Que arenas en mi pecho dan espumas a mis venas;
Y entro en los hospitales y entro en los algodones
Como en las azucenas.

Rafael Ruiz é professor Associado de História da América da Universidade Federal de São Paulo.