Há uma passagem muito conhecida de D. Quixote, quando o padre e o barbeiro, preocupados com o coitado do engenhoso fidalgo de La Mancha, decidem irromper na sua biblioteca e queimar todos aqueles livros que, de acordo com o seu critério (deles, não do Quixote) estavam equivocados e difundiam e defendiam doutrinas muito perigosas... A lista era interminável. Tudo estava errado. Tudo era perigoso. Tudo tinha que ser cancelado pelo fogo.
Nos tempos que correm, como já alertara há tempos Zygmunt Bauman, tudo isto ficou bem mais fácil. Apenas com um clique podemos cancelar qualquer coisa indesejada: um velho amigo, uma ex o um ex, um jornalista, uma parceira, uma professora, um político, outro político, mais um político... ou, se quisermos, um juiz e outro juiz e, mesmo até, um Presidente ou um Papa. Do jeito que é fácil cancelar, é só clicar onde estiver a tecla “delete” e pronto: o pesadelo desaparece, aquela coisa horrorosa, que tanto mal estava fazendo ao mundo, já não fará mais mal nenhum. Como o padre e o barbeiro... um livro, outro livro e mais um, tudo direto na grande fogueira do moralmente certo.
O caminho que está sendo trilhado pelas “comunidades identitárias” não está muito longe das atitudes dos sensatos cavalheiros do Quixote. Para começo de conversa, é preciso definir o que é que nos agrega, o que é que nos junta em um “nós” para, depois, com o mesmo furor do padre e do barbeiro, partir para o cancelamento de tudo aquilo que seja “eles”.
O mais surpreendente de tudo isto é perceber como em muito pouco tempo, passamos de um polo a outro (quem tiver um pouco mais de idade, lembrará mais facilmente). Durante uma época, o “pensamento certo” era branco, hétero, cristão, liberal e conservador. E tudo o que não fosse isso, era “coisa de preto ou de índio”, “gay ou veado, que é tudo a mesma coisa”, “ateu e comuna, no mínimo”. E era por isso, e apenas por isso, porque era o contrário daquilo que nós somos, que precisava ser combatido. E era. Os anos de ferro de cinquenta anos atrás estão aí para comprová-lo.
Agora o polo mudou. Agora “nós” somos negros, assim mesmo negros, “homos”, zen ou new age, esquerdista e progressista. E tudo o que não for assim, ou não pensar assim, ou não concordar com isso, é só cancelar. É só proibir, encurralar, deletar.
O que é que está acontecendo conosco? Como é que a gente não percebe os rumos perigosíssimos que as coisas estão tomando? Mais ainda quando um ministro do Supremo Tribunal assume a sua condição de autor, vítima e juiz, simultaneamente, para decidir quem pode e quem não pode falar e, mais, o que pode e não pode ser dito!
Contudo, o que mais surpreende é o silêncio (cúmplice?) não apenas dos outros membros do tribunal, mas de tantas e tantas instituições livres e democráticas que sempre antes levantaram a sua voz para defender a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento (Lembram? Lembram de quem eram e como era? Lembram das diretas? E dos direitos humanos? E das defesas em prol da liberdade de expressão?) e agora permanecem calados, como se se tratasse do filme O silêncio dos inocentes. Que aconteceu com todos eles? Não têm receio de que a censura se instaure de novo no País? Será que a censura de “esquerda” pode e a censura de “direita” não pode? Será que pensar diferente é tão grave assim? Será mesmo que isso que “uns” chamam de ódio é mesmo o ódio de “outros”? Não será mesmo que Narciso acha feio o que não é espelho?
Toda sociedade e todo sistema que se pretenda democrático está construído nas bases do diálogo livre, pacífico e argumentativo. Não valem “carteiradas”, não vale “cala a boca”, não vale “cancelamento” nem “censura prévia”. Isso não é democrático. Isso leva o mesmo caminho que levaram todos os padres e barbeiros da História até desembocar (para não correr o risco de eu mesmo ser censurado) no filme A menina que roubava livros...
Cada pessoa, cada grupo ou associação, cada partido político, cada jornal ou meio de comunicação pode defender livremente a sua opinião. E se alguém se sentir ofendido pode entrar na justiça que também é para isso que ela existe.
O que não pode, melhor, o que não podemos é permitir que se faça a justiça pelas próprias mãos, que alguém (ou alguns, ou uma comunidade identitária ou um partido....) se erija em detentor da verdade e que, do alto do seu poder inquisitorial (é isso mesmo: inquisitorial), impeça a alguém de expressar livremente a sua opinião, quer seja censurando, cancelando, suprimindo, cortando ou por meio de quaisquer outros métodos ou meios violentos e ditatoriais. O que não pode, e infelizmente está acontecendo cada vez mais, é decretar, não se sabe como nem com que autoridade, que uma palavra não pode ser dita, que um pensamento não pode ser expressado, que o que até o outro dia todo mundo dizia agora não pode mais não já ser dito, mas nem sequer pensado. Como disse, isto está acontecendo quase que quotidianamente em nosso País, e mais ainda nas nossas universidades públicas. E as pessoas estão perdendo os empregos, estão perdendo a honra e estão perdendo o seu devido lugar na vida pública e na particular.
Não é justo. Isso é ditadura sim. Estamos assistindo à criação de um novo crime, como em 1984, o livre-pensar. E quem ousar pensar por si mesmo pagará com o pescoço próprio na guilhotina do moralmente correto.
Se quisermos preservar a nossa democracia e a nossa sociedade temos de defender que todos, mesmo aqueles que agora não concordam com isto que estou dizendo, possam expressar livremente a sua concordância ou a sua discordância. É para isso e por isso que muitos lutaram, sofreram e, até, morreram. Por defender a liberdade.
Gostaria de acabar com um poeta da minha terra, Miguel Henández, que na sua luta contra o franquismo, à beira da morte, deixou esses versos:
Para la libertad sangro, lucho, pervivo.
Para la libertad, mis ojos y mis manos,
Como un árbol carnal, generoso y cautivo,
Como un árbol carnal, generoso y cautivo,
Doy a los cirujanos.
Para la libertad, siento más corazones
Que arenas en mi pecho dan espumas a mis venas;
Y entro en los hospitales y entro en los algodones
Como en las azucenas.
Rafael Ruiz é professor Associado de História da América da Universidade Federal de São Paulo.