O acesso a dados de geolocalização da população por meio das antenas dos celulares teria como objetivo monitorar eventuais aglomerações de pessoas no presente tempo de isolamento social por conta do alto risco de transmissão do novo coronavírus e, estrategicamente, indicar tendências e apontar a eficácia de tais medidas. Ainda que alguns estados já tenham adotado esse instrumento, como São Paulo e Rio de Janeiro, em 11 de abril o presidente da República vetou a utilização de tal recurso em esfera nacional, sob o argumento de possível indevida invasão à privacidade das pessoas.
Trata-se de mecanismo tecnológico inigualável para fazer frente a uma doença que não tem limites, ainda mais quando as operadoras de telecomunicações e empresas parceiras, responsáveis pela coleta de tais informações, afirmam que os dados são agregados e anônimos, tudo com a finalidade de preservar a privacidade do cidadão.
No entanto, verificada a aglomeração, qual será o próximo passo? A dissipação das pessoas por meio de policiais? Eventual responsabilização criminal de tais “alvos” que estavam aglomerados pela suposta prática do crime descrito no artigo 268 do Código Penal, nos termos do artigo 3.º da Portaria Interministerial 5, de 17 de março de 2020?
Ainda que a captação da geolocalização das pessoas pelos seus celulares seja louvável, o grande enigma a se ter em mente é que, tão logo verificada a concentração, as informações de quem são as pessoas, onde estavam, por quanto tempo permaneceram, entre outras, não podem servir a outras finalidades como, por exemplo, embasar um processo criminal.
O propósito é único e bem definido: coletar dados e, estrategicamente, definir medidas para evitar a reunião de pessoas, devendo tais dados serem descartados após o período de isolamento social. Não há o mínimo espaço interpretativo para se tornar viável a compilação de tais dados para o processamento criminal dos “aglomerados”, pois aí estaremos diante de processo viciado desde o seu início pela manifesta utilização de prova ilícita.
Conforme bem delimita a Constituição da República no artigo 5.º, incisos X e XII, são invioláveis a intimidade e a vida privada, bem como o sigilo de dados, direito que só pode ser relativizado por meio de autorização judicial prévia e nos termos da legislação em vigor.
Maria Francisca Accioly é advogada criminalista e mestre em Direito. Daniel Laufer é advogado criminalista e doutor em Direito.
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