Refletir sobre os aspectos que envolvem a construção da escrita no processo de escolarização de uma criança sugere uma discussão sobre o espaço escolar letrado e a sua relação com o sujeito em constituição. Uma relação configurada com enlaces e nós, apresentados entre a pedagogia e a psicanálise, entre uma escrita que precisa ser escutada, e não somente lida e ensinada.
O saber escrever não está diretamente ligado à ação de juntar letras com explícita tradução. Uma criança escreve sempre. Suas pseudoescritas são escritas, traduzidas em discursos. Sua ligação com o lápis e o papel está permeada por muitas falas e explicações, e também por letras que são desenhos, ações, relações. Relações que são rabiscadas, amassadas, rasgadas, picotadas, apagadas, borradas, marcadas. Relações escritas na ausência de letras e na repetição delas ou de seu repertório desenhado.
Se, por um lado, há uma mãe que cuida com a palavra falada, na escola há uma professora que cuida com a palavra escrita. A criança sabe que existe um outro objetivo em seus desenhos e, em um processo natural de apropriação e amadurecimento, ela fará desenhos de letras.
A transição da escrita da criança do nível pictórico para o alfabético passa por momentos de desestruturação, e aquilo que era aceito não é mais. Desenhar não basta, escrever com letras é necessário. E vale agora escrever dentro da ordem já socialmente instituída, a ordem alfabética.
Na psicanálise, o "complexo de Édipo" sugere uma ordenação de letras, uma ordenação das figuras parentais, para que se possa ler, para que se possa relacionar-se. Dessa forma, o ato de escrever liga-se à estruturação psíquica. A criança se revela nas junções das letras e nos novos significados por ela criados. São novas possibilidades de ser, só que agora um pouco mais separada de sua mãe, compondo uma escrita com mais autoria, menos cópias e repetições.
Num primeiro momento, as fases que nomeiam o processo de aquisição de escrita de uma criança parecem indicar que não ser alfabética é ter um livre acesso ao inconsciente, onde qualquer traço vale, aonde a interdição não chegou afinal, todas as marcas deixadas no papel podem ser lidas... Colocar linhas gráficas em formas e transformá-las em letras é uma condição estruturante do psiquismo. O psiquismo é movido por um desejo de ser compreendido, e a escrita é uma de suas formas de expressão e de acesso a esse mundo cheio de letras embaralhadas.
O processo de subjetivação faz com que a criança aceite por um tempo o símbolo do outro como uma significação imposta, mas que, ao mesmo tempo, ela almeja. Ela incorpora os símbolos, porque passa a desejar o que o outro lhe oferece, já que supõe que a identificação com esse símbolo lhe dará a garantia de ser reconhecida, desejada e compreendida.
A escrita de criança e a sua relação com um sujeito em constituição, com um inconsciente que está aí presente nas marcas das escritas apagadas, devem permear as discussões de professores que estão cansados de utilizar o saber pedagógico para localizar em que hipótese de escrita as crianças estão (fases da escrita). Quanto mais escreve, quanto mais censurados seus erros ao escrever, parece que mais borrões a criança deixa no papel. Quanto mais se enfatiza a fase de escrita em que o aluno está, parece que menos se lê o que a criança escreve e em que tempo está sua vida, sua subjetivação. Ler frases ou fases? Folhas em branco ou muitos borrões?
Tornar-se uma criança com uma escrita alfabética, tendo o apoio de intervenções pedagógicas que dão espaço à interrupção da escrita, que observam letras omitidas, trocadas, evitadas, que transformam borrões em escritas passadas a limpo, parece ser o maior desafio.
Os professores marcados por uma reflexão mais profunda e sensível sobre as fases da escrita consideram a presença de um inconsciente pulsando nos textos gráficos de suas crianças e no que seus olhos e sua escuta de professor-sujeito conseguem traduzir. Sempre haverá escritas pertencentes a um outro campo, ao campo do desentendido. É nesse conflito de interpretações que as múltiplas possibilidades de construção e desconstrução sobre a compreensão do ato de aprender a escrever são estabelecidas, apontando um lugar diferenciado para a criança, um lugar de sujeito.
Danielle Barriquello, psicóloga com especialização em Psicanálise, é assessora educacional da Rede de Colégios do Grupo Marista.
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