Mudar não é tão difícil. Sobretudo quando se sucede um governo que radicalizou as posições de direita a ponto de ser repudiado pela opinião doméstica e internacional. O desafio de Obama é o oposto de Lula, que, ao tomar posse, precisava garantir a continuidade como condição da governabilidade.
No caso americano, o país emerge de fase aguda de extremismo desdobrado em três aberrações: na economia, o fundamentalismo de mercado; nas relações internacionais, a militarização da diplomacia e o unilateralismo agressivo e anti-islâmico; nos grandes temas atuais, o negativismo em relação ao aquecimento global, o uso da tortura no combate ao terrorismo, a entrega da agenda social e ética a uma direita evangélica estreita e intolerante.
A tarefa de mudar viu-se facilitada pelo colapso financeiro e a ruína moral das outras políticas, acumulando escombros que qualquer governo novo seria obrigado a remover. Nem por isso é menor o mérito de Obama ao não perder tempo em ditar a agenda pública. Quase não se passa um dia sem a revogação de algumas das suas mais notórias aberrações.
É notável a precisão certeira com que vêm sendo dosadas as decisões, começando, como é justo, pelas de mais forte simbolismo e conteúdo de valores morais: o fechamento de Guantánamo, a suspensão dos tribunais militares, o repúdio à tortura, os critérios de bioética, o endosso a tetos de emissão para veículos, o telefonema ao presidente palestino, a primeira entrevista exclusiva concedida a um canal árabe.
A dez dias da posse, nada disso vai além do retorno a uma saudável normalidade, a um sólido equilíbrio e bom senso, após os desvarios recentes. Até as escolhas dos emissários diplomáticos o senador George Mitchell para o Oriente Médio, o veterano Richard Holbrooke para o Paquistão-Afeganistão indicam preferência pela experiência e realizações passadas.
O que Obama fez até agora foi devolver ao centro de equilíbrio das opiniões o pêndulo do espectro ideológico que havia sido deslocado para a extrema direita. Trata-se do realismo lúcido de quem se defronta com as dilacerantes incertezas de catástrofe econômica que não permite antever se, quando e como se voltará a tempos de crescimento e prosperidade.
É razão a mais para fazer o que se impõe mesmo em condições normais: exercer liderança consensual e compartilhada, saber escutar, entender que o poder deve ser assumido, como diz o discurso da posse, com humildade e automoderação. O discurso, aliás, evitou o triunfalismo fácil das frases grandiloquentes. Preferiu a sobriedade de uma prosa que se esforçou em não deixar sem um aceno nenhuma categoria humana, dentro e fora dos EUA.
Passou quase em silêncio o que os comentaristas mais destacaram o inédito da eleição de um afro-americano compreendendo, como diria o barão do Rio Branco, "que há vitórias que não se devem comemorar". O centrismo modernizador, o progressismo social moderado de Obama constituem o máximo de radicalismo que se pode permitir um presidente cuja própria cor da pele é vista por alguns como um desafio radical.
É esta a chave das mudanças: transcender as minorias e divisões, unir a majoritária e modesta classe média americana na luta contra perigos que ameaçam a todos: depressão, desemprego, falta de seguro de saúde, hostilidade externa.
Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna
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