A decisão judicial parece impor o silêncio às Marias, como se a "solução" para a violência que as aflige e que as macula pudesse ser agora resolvida por um processo criminal que começa sem sua fala, sem sua escuta
As mulheres tidas como feiticeiras e bruxas recebiam sanções cruéis e degradantes sobre seus corpos. A fogueira, a roda e a guilhotina ceifaram com muita dor suas vidas. A Inquisição e sua ideologia são exemplo desse extermínio. O Martelo das Feiticeiras continha as instruções a serem seguidas pelos inquisidores nos processos criminais que as penalizavam.
Esse modelo penal que as matou queria a proteção do Estado e quem o ameaçasse era punido com a pena capital; com dor e publicamente para que o temor inibisse outras mulheres. A simbiose entre Estado e religião sustentava que os crimes por elas articulados e conspirados em segredo tinham por objetivo desestabilizar o Estado.
Num outro recorte, mais à frente, as mulheres atuam fortemente na política revolucionária francesa, mas ao se instalar o processo de participação e representação políticas foram convidadas a voltar ao âmbito privado, de onde só saíram para ajudar seus maridos e filhos revolucionários.
A Inquisição e as Revoluções, em certa medida, impuseram ou reservaram às mulheres um papel no âmbito privado, no circuito das relações domésticas, no silêncio dos lares ou quiçá das florestas. Mas não um espaço público. E isso se reproduziu.
A participação e as composições no âmbito público e nas organizações privadas parecem não se ter modificado, efetivamente. Há ensaios, mas a cultura reinante em nosso modelo latino-americano privilegia, mais ainda na seara penal, um direito doméstico, que dificulta sensivelmente tal emancipação.
A Lei 11.340/2006 ao se denominar como a que coíbe a violência doméstica e familiar dá bem conta de que a violência contra mulher, segundo a lei, a ele se restringe. As violências sofridas no espaço público, nas relações laborais, por exemplo, quanto aos postos de comando e ganhos salariais não são objeto de sua consideração. Vê-se aí uma complexidade que não se quer admitir.
A lei de 2006 pretendeu acabar com a violência doméstica e familiar e estabeleceu medidas penais e de processo penal que permitem um tratamento mais severo ao acusado de agressão contra a mulher. Como seria possível que uma lei pudesse coibir algo que, ao que se alardeia pelo próprio movimento de mulheres, encontra-se culturalmente arraigado em nossa estrutura social? A lei não tem esta capacidade: não coíbe e não reprime nem esta nem qualquer outra violência.
Assim é necessário declarar que o quer a lei é punir e castigar o agressor. O problema é que esse discurso (que não está claro) destoa de um Estado que se diz democrático, porque a vingança é (e deve ser) eticamente inaceitável. Aí residiria uma das maiores incongruências do movimento de mulheres: usar a violência estatal (que é a pena) para lidar com a violência contra elas.
No âmbito do processo criminal, que há muito "confiscou" a palavra da vítima e "sequestrou" sua participação efetiva na Justiça criminal, especialmente, sob o mito da imparcialidade dos julgamentos, ficou latente um desejo de vingança; que não só foi tomado pelo Estado (ele é o vingador), como facilitou o surgimento de uma demanda coletiva por repressão.
A tentativa de efetivar um modelo restaurativo e que permitisse a reflexão de agressor e vítima (mesmo timidamente, pois limitada pelas penas dos crimes) sobre o conflito existente veio com os Juizados Especiais Criminais. A experiência do modelo personalizado e multidisciplinar da cidade de Curitiba ia nesse rumo. Os atores desse processo eram partes que expunham mediadas pela Justiça criminal de nova matriz suas agruras e seus anseios, sua história particular que culminou naquela violência. Buscava-se uma solução social para resolver o conflito que também é social. Denúncias e sentenças cediam lugar a experiências sociais e soluções particulares. Sem modelos, sem estatísticas. Havia um lugar para escutar essa mulher vitimada e vitimizada, talvez nunca antes ouvida. O homem também falava e era ouvido.
A decisão judicial, ora festejada, parece impor o silêncio às Marias, como se a "solução" para a violência que as aflige e que as macula pudesse ser agora resolvida por um processo criminal que começa sem sua fala, sem sua escuta, e que segue incontinente o rumo de tantos outros, culminando numa pena, e enchendo nossas cadeias já tão lotadas. Ela precisa se perceber como a sofrer uma violência. O autor da violência que a inflige. O Estado deve contribuir para sua pacificação e não para sua penalização. Para que ambos não mais aceitem ser violados nem violadores.
A violência do sistema propiciará apenas, a história tem mostrado, a perpetuação do seu modelo que é autoritário e repressor; não apaziguando senão potencializando conflitos.
Priscilla Placha Sá, advogada criminal em Curitiba, é professora de Direito Penal da UFPR e da PUCPR. Membro do Núcleo de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
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