A revolta calada e impotente de cordeiros levados ao matadouro pode induzir a comportamentos irracionais e perigosos como já se começa a ver na ofensiva raivosa da direita americana
Um pequeno povo, o da Islândia, acaba de dar pela segunda vez uma lição de coragem moral ao mundo. O eleitorado rejeitou de novo pagar pela insanidade e cobiça dos bancos, salvando a honra de milhões de seres humildes sacrificados pela mais iníqua das crises.
Muitas crises financeiras da história tiveram causas complexas, difíceis de individualizar ou controlar. Desta vez, não. Sobra documentação para provar que a crise atual foi provocada pelo comportamento temerário e imoral de financistas inescrupulosos. O que separa esses homens de trapaceiros como Madoff é um fio quase imperceptível e a cumplicidade de governos que faltaram ao dever de proteger o público.
Ler os relatórios do Congresso norte-americano e os livros que esmiuçaram as práticas desses bancos, assistir a um documentário implacável como o Inside Job é experiência que nos deixa perplexos. Como é possível uma falta de proporção tão grande entre a enormidade do mal cometido e a ausência de indignação moral, quase a resignação, com que são recebidas as revelações?
É como se se tratasse de tsunami moral, de fatalidade da natureza, de um ato de Deus, como se diz em inglês. Contra isso nada haveria a fazer a não ser obrigar cada um a dar uma cota de sangue para a reconstrução. Do quê? De sistema que já começou a repetir a iniquidade de bônus escandalosos a especuladores que ganham por ano 420 vezes mais que um trabalhador médio!
O silêncio dos cordeiros: a estranha morte da América progressista foi um ensaio de Tony Judt poucos anos antes de sua morte. Nele, um dos mais originais e perceptivos historiadores de nosso tempo tentava entender por que os intelectuais progressistas tinham enterrado a cabeça na areia ante a catastrófica política externa de George W. Bush.
Com igual pertinência, no entanto, o título se aplica a outra morte estranha: a da consciência moral ante a injustiça de obrigar vítimas da crise a pagar por seus custos.
O que chama a atenção na Islândia é seu caráter único. Em nenhum outro país devastado pela crise, Grécia, Portugal, Espanha, na Irlanda mesmo, onde o déficit público para cobrir os bancos chegou a 33% do PIB, se teve igual coragem.
A revolta calada e impotente de cordeiros levados ao matadouro pode induzir a comportamentos irracionais e perigosos como já se começa a ver na ofensiva raivosa da direita americana. Na crise dos anos 1930, o presidente Franklin D. Roosevelt conseguiu canalizar para objetivos reformistas e sociais as energias da população vitimada pela Depressão. Os medíocres governos europeus reagiram de modo convencional e acabaram quase todos tragados pela extrema direita.
Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco.