O filósofo italiano Giorgio Agamben abre a primeira parte de sua obra principal, Homo sacer, chamando atenção para um paradoxo que marca o exercício dos poderes de soberania. Para o filósofo, “o soberano encontra-se, ao mesmo tempo, fora e dentro da ordem jurídica”. Dito de outro modo, o soberano é aquele que possui o poder de suspender a validade das leis e instaurar o estado de exceção. E soberano é quem, por um ato de força, pode afastar a normalidade dos direitos individuais e coletivos, lembrando a todos nessa potencialidade que há um fundamento de força e coação por detrás de toda ordem jurídica constitucional, mesmo quando esta afirma-se liberal ou garantista.
A faculdade de estar dentro e fora da lei permite ao soberano criar um espaço onde espera-se a observância mesma da lei. Sua ação ao mesmo tempo garante a observância dos direitos mais básicos, ditos naturais, como os que permitem a livre circulação de ideias e pessoas, protegem a vida e a integridade física e patrimonial dos indivíduos e autoriza que estes se reúnam para confraternizar, cultuar ou organizarem-se social e politicamente; e demonstra que há, por detrás desses direitos, um exercício constante de violência que se manifesta na legitimidade do monopólio do uso da força por parte do Estado.
Para o soberano, a lei é uma ocasião de uso da força. E para todos os demais indivíduos, que não exercem soberania, resta a tentativa de controle dessa força potencial e o exercício do espaço de autonomia que resta em suas vidas privadas. A autonomia dos indivíduos também é paradoxal na medida em que pode ser exercida apenas diante da omissão do soberano em intervir – quando o Estado não se imiscui em sua vida privada –, mas também depende do exercício da violência que, diretamente ou por meio das instituições do Estado, garante a segurança, o cumprimento dos contratos e impede que a vida se torne uma guerra de todos contra todos. É a partir de tal paradoxo que podem os indivíduos exercer suas potencialidades individuais e contribuir com o bem comum.
O bem comum, que de maneira nenhuma se confunde com o bem de todos os indivíduos, é aquela situação social ideal onde ocorreria a potencialização do bem-estar de todos os indivíduos, para que o maior número possível de pessoas possa viver bem. Como instância política de caráter coletivo e utilitarista, acaba por muitas vezes justificando o suplante de direitos e interesses individuais, uma vez que o bem de muitos é melhor que o bem de poucos.
Ao estar ao mesmo tempo dentro e fora da lei, o soberano terá a prerrogativa de definir o que é de fato o bem comum – poderá afirmar quais as situações e controles necessários para que os indivíduos possam potencializar seus bens individuais. Esse é um fundamento apolítico da política que em poucos momentos da história esteve tão à mostra quanto no período atual, quando, por conta do enfrentamento à epidemia de Covid-19, uma série de direitos e garantias até então considerados fundamentais viram-se questionados ou mesmo afastados em nome de uma pretensa defesa do bem comum.
Respaldados por argumentos construídos desde a interpretação do posicionamento das principais agências fomentadoras e promotoras do conhecimento científico, políticos detentores de cargos executivos em todo o mundo – e especialmente no Brasil – agem soberanamente (sendo tais políticos soberanos de fato ou prepostos destes) na realização de suas prerrogativas: o afastamento do Estado de Direito e a implementação do estado de exceção. Em nome do que entendem por bem comum, encontram-se suspensos (e malvistos) muitos dos direitos naturais aos quais fizemos menção anteriormente.
Decretos de toda ordem sobrepuseram-se ao devido processo legislativo, revogando, assim, em atos de constitucionalidade duvidosa e legitimidade nula, direitos naturais que são elementos de salvaguarda contra os abusos do exercício do poder por parte do Estado e também o reconhecimento, por parte deste mesmo Estado, da esfera de ideias e relações que fazem com que os seres humanos tenham sua dignidade reconhecida, recebendo tratamento diferente do que seria conferido a um servo ou escravo.
Não afirmamos aqui que as medidas de combate à pandemia são de todo injustificadas. Muito menos negamos a emergência e importância do problema. Apenas apontamos para o fato de que as soluções para ele oferecidas fortalecem a posição de soberania dos ocupantes de cargos executivos à custa dos direitos naturais dos submetidos a tais poderes. Uma das expectativas de direito vitimadas nessa queda de máscaras do poder subjacente à ordem constitucional é o da previsibilidade e estabilidade das normas que regem a vida em comum.
Os planos de contingência que estabelecem restrições de mobilidade e trabalho são um exemplo disso. Criados sob a chancela de cientistas, eles trazem critérios objetivos para as necessárias restrições de circulação de pessoas e bens. As três fases de alerta estabelecidas pela prefeitura de Curitiba ou as quatro estabelecidas no Plano São Paulo, por exemplo, condicionam a liberalização ou o recrudescimento das restrições conforme, dentre outros critérios, o número de testagens positivas e óbitos, a ocupação dos leitos hospitalares e as taxas de contágio vigentes em um dado período de tempo. Tais critérios mantiveram-se estáveis desde sua publicação, no início da pandemia, até a realização das eleições em novembro do ano passado.
Após as eleições – marcadas por promessas de respeito aos direitos de reunião, culto, locomoção e liberdade econômica dos eleitores por parte de candidatos derrotados e eleitos –, mesmo a previsibilidade dos decretos viu-se relativizada. São Paulo viu a instauração de “fases vermelhas” não por causa dos números objetivos estabelecidos pelo próprio governo, mas como medidas ditas “preventivas” em feriados e fins de semana. Curitiba, como todo o estado do Paraná, passou a viver sob toque de recolher que se iniciou de maneira dita educativa, mas já se encaminha para o estabelecimento de sanções das mais diversas para aqueles que cometerem o egoísta e mesquinho ato de deixarem suas casas no período noturno.
Toques de recolher são medidas adotadas por regimes de exceção. Se a situação excepcional que vivemos desde o início desta pandemia é desculpa para a suspensão de direitos naturais, é porque os soberanos enxergam tais direitos como concessões suas, e não como, de fato, potencialidades presentes na intimidade do ser de cada um dos seus governados. Afinal, para preservar o bem comum, os soberanos suspendem exatamente aquilo que distingue as pessoas livres e as caracteriza como homens, na mais plena acepção do termo. A preservação de uma vida onde não se pode se reunir com a família, participar de cultos religiosos ou encontros políticos, trabalhar livremente, estudar, viver nos faz perguntar o que exatamente está sendo protegido nessas medidas de exceção. O que resta a ser preservado aí além da vida reduzida à animalidade, a mero processo biológico?
E tal pergunta se fortalece quando os soberanos, após imporem tantas restrições à população – chegando ao extremo de cancelar o feriado de carnaval ou inviabilizar as festas de Natal e ano-novo –, viajam livremente ao exterior em viagens de lazer, participam de festas nas madrugadas sem máscaras ou aglomeram-se em estádios de futebol. O paradoxo apontado, de que tais pessoas encontram-se dentro e fora da lei ao mesmo tempo, aparece de forma pungente e é denunciado como hipocrisia. Apontar a hipocrisia de quem ocupa posições de poder, porém, já é um ato de impotência. A sensação de que as restrições são para uns e as liberdades são para outros é, cada vez mais, a mera constatação de um fato, o desnudar do próprio fenômeno da soberania que constitui a política e contra o qual a revolta individual pouco pode fazer, especialmente nesses tempos de estado de exceção: um protesto seria considerado aglomeração; uma manifestação individual em rede social, fake news. Não há muitas saídas para além de apontar a hipocrisia alheia.
Pois então, que seja: enfim, a hipocrisia.
Rafael Pereira de Menezes é bacharel em Direito, mestre e doutor em Filosofia, servidor da Justiça Eleitoral, diretor de pesquisa no Instituto Federalista e professor de Filosofia, Ética e Gestão Pública no Centro Universitário Campos de Andrade.
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