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O STF, a sua “razão de decidir” e a Constituição deixada de lado

Viagens secretas dos ministros do STF no ano passado custaram R$ 850 mil ao contribuinte.
Estátua da Justiça. Imagem ilustrativa. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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A TV Justiça ofereceu, no último dia 23 de setembro, a oportunidade de assistir em seu canal do YouTube a um julgamento que exemplifica como o respeito à Constituição Federal não tem norteado, muitas vezes, as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em diversos temas. O julgamento em questão era a análise do Recurso Extraordinário (RE) 603624, tema 325 de Repercussão Geral, objeto das sessões plenárias de 17 e 23 de setembro da suprema corte.

A matéria tratava da constitucionalidade da incidência das contribuições ao Sebrae, Apex e ABDI com o advento da Emenda Constitucional 33/2001, a qual, dentre outras alterações, incluiu um parágrafo 2.º ao artigo 149 da Constituição Federal de 1988. O tribunal, por maioria, negou o provimento do recurso e reconheceu a incidência das contribuições.

Aqui não adentramos no cerne da discussão que, conforme expressado na brilhante sustentação oral e no parecer do professor Humberto Ávila, era relativamente simples; afinal, o texto constitucional não dava margem à dúvida quanto à inconstitucionalidade. As respectivas leis de regência elegiam base de cálculo daquelas contribuições não contemplada no texto constitucional. O que causou consternação foi a manifestação pública de voto pelos eminentes ministros.

A discussão teórica foi materializada pela divergência apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, acompanhado pela maioria, em dissonância ao voto proferido pela relatora, ministra Rosa Weber, dando provimento ao recurso e julgando inconstitucionais as normas consideradas. Chamaram a atenção, especialmente, os votos dos ministros Gilmar Mendes, Luis Roberto Barroso e Luiz Fux.

Gilmar Mendes, focando nas supostas consequências danosas à atividade desempenhada pelas citadas entidades, as quais, nas suas palavras, estariam inviabilizadas com a extinção de sua principal fonte de custeio, bem como na necessidade de fomento daquelas pela administração direta, ou seja, nova despesa a cargo do governo federal, inaugurou debate centrado em uma vertente consequencialista da atuação daquele tribunal constitucional.

Há uma fragilidade nessa argumentação, ainda que caiba uma ponderação nesse aspecto. Como consequência possível de uma declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, sempre alguém sairá perdendo. E, no caso, perdem os contribuintes, pessoas jurídicas que continuarão arcando com uma contribuição possivelmente ou efetivamente inconstitucional, que anualmente representa até 75% de um mês de sua folha de salários. O papel da suprema corte, de zelar pelo cumprimento da Constituição Federal, pode ser substituído pela decisão a respeito de tais perdas e tais ganhos?

Em relação ao posicionamento dos ministros Barroso e Fux, basicamente, ainda que entendam pela inconstitucionalidade da norma então em exame, considerando o “momento” que estamos passando, com uma citada “justificativa metajurídica”, arvoraram-se na tese proposta pela divergência, o que causa especial preocupação.
Vale dizer, em um tribunal constitucional, em que os ministros são nomeados conforme requisitos de reputação ilibada e notório saber jurídico e que tem como pressuposto de existência a defesa da própria Constituição, essa tarefa foi negada de modo a acomodar interesse imediato da administração de turno, em vista da situação excepcional em que vivemos.

O mais interessante é que, ainda que passível de crítica pela incoerência do instituto conforme utilizado no Brasil, esses argumentos poderiam facilmente ser acomodados em um provimento do pedido de modulação de efeitos no tempo por parte da procuradoria federal, talvez até com um marco temporal “exótico”, por exemplo, declaração de inconstitucionalidade daqueles normativos com efeitos a partir de janeiro de 2021, ou mesmo 2022.

Afinal, a situação excepcional é evidente e, como não poderia deixar de ser, causa apreensão. Visando combater os efeitos da pandemia do novo coronavírus na economia, o governo federal “abriu o cofre”, o que deve projetar o endividamento público de 71% do Produto Interno Bruto do país em 2019 para algo próximo de 95% ao fim desse ano.

Entretanto, em assim não o fazendo, o que é mais inquietante é imaginar-se possível que um tribunal constitucional, valendo-se de aferição pessoal de parte de seus ministros do que se entende importante ou qual consequência se almeja evitar, possa literalmente negar o texto constitucional, inclusive superando precedente do próprio tribunal. Isso porque, no caso concreto, estávamos diante de emenda constitucional datada de 2001, de repercussão geral reconhecida desde 2010 e de matéria já abordada pelo mesmo tribunal em repercussão geral em 2013, com então provimento favorável ao respectivo recurso extraordinário.

Cabe ainda ponderar que, em observância à teoria dos precedentes judiciais, incorporada ao Código de Processo Civil de 2015, precedentes judiciais obrigatórios, como é o caso de recursos extraordinários julgados sob a sistemática repetitiva, têm eficácia horizontal também sobre os tribunais dos quais decorreram, o que significa dizer que sua superação deve ser muito bem justificada, a teor do preconizado no § 4.º do artigo 927 daquele código.

Pois, entre a valoração pessoal de importância e consequência a ser evitada de um decisório – que pode comportar “salvar” entidades mantidas por contribuição parafiscal, a soltura imediata de m ilhares de presos ou a anulação de sentenças – ou a letra da Constituição Federal e o respeito à estabilidade dos precedentes judiciais, o Supremo Tribunal Federal, nosso tribunal constitucional, mais uma vez demonstra que vem optando pela primeira “razão de decidir”.

Morvan Meirelles é advogado especialista em Direito Tributário e LLM em Direito Tributário Internacional.

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