Temos um problema com o nosso Supremo Tribunal Federal: ele decide de forma célere o que não precisaria decidir e procrastina a perder de vista decisões que ele realmente precisa tomar.
Dias atrás, o STF convocou sessão plenária urgente e passou oito horas discutindo se os deputados deveriam votar o impeachment na Câmara em ordem alfabética ou pela latitude da capital do estado que representam. Ao fim, a corte decidiu que não deveria se meter no assunto, o que já deveria ser claro antes de tudo: ordens de votação são matérias internas da Câmara, definidas pelo seu regimento, e não há nenhuma questão constitucional grave que justifique a intervenção do Supremo; seria apenas intromissão em outro poder.
No fim, o que o Supremo faz ou deixa de fazer depende, unicamente, do que o Supremo quer
Na quarta-feira, dia 20, ocorreu o exato contrário: o STF marcou sessão de julgamento colocando em pauta apenas os dois mandados de segurança contra a posse de Lula na Casa Civil. Aberta a sessão, o ministro Teori Zavascki imediatamente pediu adiamento, por uma formalidade processual que poderia ser perfeitamente ignorada, no que foi acompanhado pelos outros ministros, à exceção de Marco Aurélio. Ricardo Lewandowski encerrou a sessão, convidou todos para um café e... o Supremo não decidiu o que deveria decidir.
Procrastinada outra vez a decisão, Lula continua amparado sob as asas do STF, que espera a resposta do Senado sobre o impeachment para, então, não precisar se comprometer: se Dilma for afastada, Lula não será ministro de todo modo e o Supremo não precisará fazer nada.
A raiz dos problemas do Supremo é mais profunda: ao admitir (na ADPF 378, ano passado) a judicialização do impeachment, que é um processo eminentemente político, o Supremo tomou para si encargos além dos devidos e, agora, todo o impeachment poderá ser judicializado – até mesmo questiúnculas como ordem de votação por latitude ou pelo alfabeto.
O constituinte quis que o Supremo fosse o guardião da Constituição. O problema é que ele não previu, expressamente, quem diria ao Supremo o que é constitucional ou não, a ponto de a coisa se converter em uma grande petição de princípio: o próprio STF é que diz o que é a Constituição que ele vai guardar e, com isso, tudo pode se tornar constitucional, desde que o STF o queira.
Há muito tempo venho advertindo contra o perigo de que o STF acabe se tornando um tribunal em que “supremo” não esteja apenas no nome, mas também no poder. Afinal, um tribunal que define, ele mesmo, o objeto de sua ação tem poderes irrestritos, bastando que seus juízes digam que é constitucional – e, portanto, sob jurisdição do tribunal – aquilo sobre o que querem decidir. Assim com ordens de votação e com processos políticos como o impeachment, mas também com temas sobre os quais o Legislativo soberanamente decidiu o contrário do Supremo (por exemplo, a definição constitucional de matrimônio, que o Supremo modificou contra a vontade legislativa expressa de mantê-la; ou o aborto de anencéfalos, permitido pelo STF fora de suas competências).
Porém, se o STF pode definir o seu próprio objeto de jurisdição, o contrário também é verdade: ele tem poderes supremos para afastar objetos que lhe competem – estes, sim – por definição constitucional, como a nomeação de um ministro em contrariedade à moralidade administrativa. Basta que o Supremo queira não decidir, basta que ele queira adiar indefinidamente. No fim, o que o Supremo faz ou deixa de fazer depende, unicamente, do que o Supremo quer.
Isso nos traz à mente a clássica questão de Juvenal (Sátira VI, 347–8): Quis custodiet ipsos custodes? Quem guardará o guardião?