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O tecnofeudalismo das Big Techs mudou o capitalismo e não está claro se isso é bom

(Foto: Jônatas Dias Lima com Dall-E)

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Durante a era Obama, um dos temas populares entre os marxistas era o do "realismo capitalista". Desenvolvido em profundidade pelo falecido Mark Fisher em seu livro de 2009 Capitalist Realism: Is There No Alternative? (assim como pelo provocador marxista esloveno Slavoj Žižek), o realismo capitalista sugere que, no século XXI, não apenas não há mais alternativa ao capitalismo, mas é difícil, senão impossível, até mesmo imaginar a existência de um sistema diferente do capitalismo. No entanto, 2009 parece estar muito distante. Nos Estados Unidos, vimos a ascensão e queda de Obama, a ascensão, queda e retorno de Trump, e o longo inverno de confusão durante e após a COVID. Nesse meio-tempo, surgiram, nos Estados Unidos, à direita os movimentos da Nova Direita, os pós-liberais e os integralistas, enquanto à esquerda, desiludida pelo trumpismo e frustrada pelo que considera uma traição do governo Biden e a coroação antidemocrática de Kamala Harris, está silenciosamente reconsiderando formas alternativas de progressismo.

Muitos à direita veem um novo perigo nas Big Techs, que, por meio das redes sociais, capturaram os corações, mentes (e bolsos) do mundo, engajando-se em uma forma de engenharia social e censura que cada vez mais se assemelha às políticas do Partido Comunista Chinês. Presume-se geralmente, entre os conservadores, que a esquerda é apaixonada pelas Big Techs, que, até a aquisição do Twitter (agora X) por Elon Musk, possuíam uma marca decididamente progressista. No entanto, o economista grego de esquerda e ex-político Yanis Varoufakis, em sua obra mais recente Technofeudalism: What Killed Capitalism, apresenta uma crítica incisiva às Big Techs, que Varoufakis, curiosamente, identifica como uma força que pode não apenas erradicar a exclusividade representada pelo realismo capitalista, mas destruir o capitalismo como o conhecemos.

Baseando-se em uma variedade de mitos e anedotas de seus ancestrais gregos antigos, Varoufakis argumenta que, assim como o mundo mediterrâneo foi transformado pela introdução do ferro (imortalizado por Hesíodo no mito das “Cinco Eras”), nosso mundo também está entrando em uma nova era. Assim como o ferro destruiu a Idade do Bronze (com ferramentas de ferro colidindo contra instrumentos de bronze mais frágeis), a era digital está substituindo o capitalismo fordista industrial da era eletrônica tardia. A Idade do Ferro, assim como a nossa era digital, também mudou a forma como o tempo era experimentado, acelerando o processo de desenvolvimento tecnológico.

Varoufakis identifica seu método como marxista, mas suas políticas como social-democratas. Ele reconhece que o triunfo do capitalismo liberal ocidental americano com a queda da União Soviética não representou apenas o fim do comunismo totalitário, mas também das social-democracias. Os anos 1990 foram marcados pelos Clintons e pelos Blairs, que criaram uma forma de capitalismo “proto-woke”, combinando políticas econômicas liberais com o estado de bem-estar social e o que, na época, era conhecido como “correção política”. Um dos principais objetivos de Varoufakis em Technofeudalism é reviver um esquerdismo libertário, que ele associa a vários movimentos de direitos civis dos séculos XIX e XX. Ele argumenta que os regimes totalitários dos séculos XX e XXI associaram a esquerda e o marxismo quase exclusivamente a regimes comunistas opressores.

Assim como o ferro destruiu a Idade do Bronze, a era digital está substituindo o capitalismo fordista industrial da era eletrônica tardia

Como outros pensadores de esquerda, Varoufakis apresenta uma leitura marxista do desenvolvimento do capitalismo. Ele observa que o capitalismo sofreu uma mudança marcante em meados do século XX — de simplesmente fornecer bens e serviços para a manipulação do desejo humano. Combinado com o poder da publicidade, o capitalismo passou a manipular emoções e a “fabricar” desejos de forma muito poderosa. Varoufakis dá o exemplo do famoso “pitch do Hershey Bar” de Don Draper em Mad Men, no qual se nota que Hershey’s não está apenas vendendo chocolate, mas oferecendo uma profunda experiência de nostalgia. Assim, Don Draper, apesar de ser um personagem fictício, representa uma nova forma de capitalismo baseado em informações. Ele também simboliza o paradoxo do capitalismo, que, segundo Varoufakis, tende a mercantilizar toda a existência. No entanto, algumas coisas precisam permanecer fora da mercantilização como “experiências” que o capitalismo pode oferecer. O Hershey Bar, na visão de Varoufakis, agora é o “simulacro” ou símbolo de outro valor que não pode ser obtido ou mercantilizado.

À medida que ele chega ao desenvolvimento da “Era da Publicidade” de Don Draper, Varoufakis narra um capitalismo impulsionado pela tecnologia. A eletricidade de Thomas Edison deu vida ao capitalismo no início do século XX e levou aos Anos Loucos (Roaring Twenties), culminando na quebra da bolsa em 1929. FDR introduziu nos EUA o estado de bem-estar social e elementos do socialismo democrático com o New Deal. Segundo Varoufakis, o New Deal criou uma relação entre o governo e as grandes empresas que produziu maravilhas como o Projeto Manhattan e a propulsão a jato, mas também criou a “porta giratória” entre grandes empresas e o governo, um fenômeno tradicionalmente criticado tanto pela direita quanto pela esquerda. As enormes corporações formadas durante a Segunda Guerra Mundial constituíram o que Varoufakis, inspirado por John Kenneth Galbraith, chama de “tecnoestrutura”, assim como o sistema de Bretton Woods.

Durante meados do século XX, a tecnoestrutura desenvolveu uma ferramenta extremamente poderosa: o que Varoufakis chama de “televisão mercantilizada”. A televisão mercantilizada baseia-se na realização de que a atenção dos espectadores pode ser comercializada, explorada e vendida a anunciantes. Assim surgiu o mundo de Don Draper e dos executivos de publicidade. No entanto, Varoufakis observa que a classe média americana não era grande o suficiente para gerar lucros exclusivamente. Como resultado, Japão e Europa foram integrados à economia americana, vinculando suas moedas ao dólar.

Varoufakis admite que esse foi o “auge dourado do capitalismo”, encerrado pelo “Choque Nixon” de 1971 — o fim do padrão-ouro. O Choque Nixon, segundo Varoufakis, deu início a uma era de especulação financeira, que ele chama de “Minotauro Global” e que outros pensadores chamaram de globalização ou financeirização. Esse Minotauro Global era baseado no consumo e na dívida americanos — bem como na “reciclagem” da dívida global. Embora o Choque Nixon tenha, em certo nível, sido um sucesso, e o dólar tenha se recuperado, esse sucesso foi possibilitado pelo neoliberalismo, ou pela destruição das estruturas sociais-democráticas anteriores, assim como pelo computador pessoal, que permitiu processos financeiros rápidos e complexos em larga escala. Segundo Varoufakis, o Minotauro Global foi mortalmente ferido (mas não morto) no colapso do mercado de ações em 2008.

O capitalismo estava enfraquecido, mas não derrotado, em 2008. Agora, no entanto, ele está ameaçado por um novo sistema econômico possibilitado pela tecnologia definidora do século XXI: a digitalização. Esse novo sistema econômico e social é o que Varoufakis chama de “tecnofeudalismo” ou “capitalismo de nuvem”. Varoufakis usa outro exemplo da cultura e história grega para ilustrar seu ponto: a chegada dos dórios e o estabelecimento de um sistema feudal na Grécia antiga. O tecnofeudalismo e o capitalismo de nuvem são fundamentalmente mais restritivos à liberdade do que o capitalismo jamais foi. Citando exemplos como Alexa e Google AI, Varoufakis observa que os novos capitalistas da nuvem conseguem monitorar, controlar e fabricar desejos de formas que Don Draper e os executivos de publicidade do século XX jamais poderiam imaginar. Os capitalistas da nuvem, como Google, Amazon e as redes sociais, vendem informações de usuários para outras empresas, que bombardeiam esses usuários com anúncios. Além disso, os capitalistas da nuvem possuem os servidores nos quais grande parte dos negócios globais é transacionada. Ao contrário das formas anteriores de capitalismo, a internet está se tornando cada vez mais controlada e restrita, e os negócios agora são meros inquilinos que possuem feudos dos capitalistas da nuvem. Varoufakis observa que a nova internet monetizada é um declínio em relação aos seus primeiros dias, quando a web era um espaço de compartilhamento e divulgação gratuita de informações e bens.

Em Technofeudalism: What Killed Capitalism, Varoufakis apresenta um aviso ao leitor que, como muitos de seus exemplos, é derivado da mitologia de Hesíodo: a tecnologia traz Nêmesis, ou punição divina dos deuses. No contexto contemporâneo, há um sentimento geral de que a tecnologia sobrecarregou os humanos, e Nêmesis já chegou. É um tema dominante que as mídias sociais e o uso excessivo de telas foram catastróficos para o desenvolvimento emocional e mental das gerações passadas. Além disso, os humanos estão mais solitários e miseráveis do que nunca. Em Technofeudalism, Yanis Varoufakis estende uma mão amiga aos libertários conservadores. O livro também levanta questões importantes sobre a natureza da liberdade e da ordem social em uma era na qual tanto a direita quanto a esquerda estão se movendo em direções autoritárias.

O século XX testemunhou o desmantelamento das grandes monarquias funcionais do mundo na Áustria, Alemanha e Rússia (e mais tarde no Japão), bem como a breve ascensão e queda dos movimentos socialistas de direita na Alemanha, Itália, França (em certa medida), Espanha e Portugal. Também viu a longa Guerra Fria e o eventual colapso do comunismo soviético. De aproximadamente 1990 até pelo menos 2008, parecia que o capitalismo liberal democrático era a única opção — o fim da história.

No entanto, uma série de movimentos na direita propuseram formas de socialismo (ainda que moderadas) e autoritarismo. Embora esses grupos frequentemente olhem para modelos medievais e do século XIX (como os trazidos à vida por Bismarck e Napoleão), como Varoufakis observa (e Michel Foucault já havia notado antes dele), a tecnologia contemporânea nas mãos de um regime autoritário mal-intencionado teria consequências horríveis (como tem ocorrido na China comunista e, em menor escala, no Ocidente).

O que se precisa hoje é de uma conversa genuína sobre a natureza da liberdade e uma história sóbria do capitalismo que aponte seus méritos e falhas. Não há dúvida de que a tecnologia digital contemporânea teve efeitos deletérios, especialmente nos jovens. No entanto, como Varoufakis observa, as eras da história vêm e vão, e sempre há esperança de uma nova era que veja não uma tecnologia onívora escravizando e devorando tudo em seu caminho, mas uma ferramenta cujo uso seja informado pela virtude e pelo objetivo do florescimento humano.

Jesse Russell é escritor e autor em diversas publicações norte-americanas, incluindo Law and Liberty, The New Criterion e The American Conservative.

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©2025 Acton Institute. Publicado com permissão. Original em: The Invasion of Cloud Capitalists

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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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