A imagem de um militante do Estado Islâmico (EI) destruindo, com uma furadeira, a estátua de um touro alado em Nínive, nas cercanias de Mossul (Iraque), provocou justificado escândalo em todo o mundo. O ato faz parte de uma campanha de vandalismo mais ampla, que abrange as preciosas peças do museu de Mossul e a eliminação, com escavadeiras, do sítio arqueológico da cidade de Nimrod, construída no século 13 a.C. pelo rei Shalmaneser I e convertida, 400 anos depois, na capital do Império Assírio. Não é um engano traduzir a ofensiva de eliminação do passado como a face simbólica complementar das bárbaras decapitações, crucificações e imolações promovidas pelo Estado Islâmico. Mas a ferocidade singular do EI não deveria ocultar a perturbadora normalidade do conceito que a sustenta.
Na hora do triunfo, em 629, Maomé ordenou a suas forças a destruição dos ídolos pagãos de Meca. Num vídeo de propaganda, os arautos do EI dizem que reproduzem aquele ato inaugural por meio da supressão das “estátuas e ídolos esculpidos por satânicos”. Os jihadistas precisam aniquilar os vestígios das sociedades e culturas que precederam o Islã. Por isso, as relíquias assírias conhecem o mesmo destino dos gigantescos budas de Bamiyan, no Afeganistão, demolidos pelo Talibã em 2001. A história deve começar no lugar certo, ou seja, no momento da revelação da verdade suprema, a fim de conferir uma legitimidade absoluta aos que se apresentam como herdeiros pios do Islã. O EI almeja controlar o passado para controlar o futuro. Não há nada de incomum nesse projeto.
As “guerras de memória” não são travadas em torno do passado, mas do presente e do futuro
Quando tudo começou? Quem nos fez o que somos? São essas as perguntas decisivas nos empreendimentos de controle do passado. No Irã monárquico, durante o reinado de Reza Pahlevi (1941-1979), a celebração do passado pré-islâmico figurava como prioridade de Estado. Engajado na modernização conservadora do país, o xá cuidava de separar rigidamente o Estado da religião, temendo a força social do clero xiita. A arqueologia ocupava um lugar político estratégico no Irã anterior à revolução de 1979. Na narrativa histórica oficial, o Irã representava, essencialmente, a permanência do antigo Império Persa. Sob essa perspectiva, a Pérsia islâmica, inaugurada no século 7.º pela dinastia Safávida e derrubada em 1925 por Reza Shah, não passava de um interregno sombrio na trajetória brilhante do Império.
A disputa pelo controle do passado não está ausente da vida política das democracias. Clóvis I converteu-se ao catolicismo em 496, pelo gesto do batismo, numa igreja de Reims. Quase 15 séculos depois, o presidente Charles de Gaulle disse que, “para mim, a história da França começa com Clóvis, escolhido como rei pela tribo dos francos, que deram seu nome à França”. A “França eterna”, fundada pela conversão do rei bárbaro, inspirou os partidos conservadores franceses. Contudo, em 1996, as comemorações de 1,5 mil anos do batizado deflagraram intensas controvérsias identitárias. De um lado, os partidos de esquerda argumentaram que a França “verdadeira”, assentada no laicismo, não é a “eterna”, de 496, mas a nação fundada pelos revolucionários de 1789. De outro, ainda que sem renegar a “França de Clóvis”, os neofascistas da Frente Nacional preferiram enfatizar um segundo ato fundador, simbolizado pela figura da santa guerreira Joana d’Arc.
As “guerras de memória” não são travadas em torno do passado, mas do presente e do futuro. Reza Pahlevi manobrava para extinguir a chama da mesquita. A “França eterna” funciona atualmente como uma ferramenta xenófoba para separar os “franceses de sangue” dos imigrantes muçulmanos. Os alvos dos jihadistas do EI são as minorias religiosas, especialmente os cristãos, cuja história na Mesopotâmia começa com a lendária conversão do tardio rei assírio Senaquerib, no século 4.º, e a posterior construção de um monastério em Nimrod. A história, nesses casos como em tantos outros, não é uma investigação sobre o que não sabemos, mas um veredito utilitário sobre a verdade e a falsidade.
Vivemos, no Brasil, uma curiosa “guerra de memória”. Segundo a narrativa de Lula, a redenção de uma nação vergada por “500 anos” a uma elite monolítica e antinacional começou com sua própria ascensão ao Planalto (numa versão alternativa, a redenção foi ensaiada por Getúlio Vargas, mas realizada apenas com o advento de Lula). Mais recentemente, no rastro do petrolão, o golpe militar de 1964 e a redemocratização foram incorporados à revisão histórica lulopetista, com a finalidade de fabricar paralelismos ilusórios. Por força deles, a célebre “elite branca” tornou-se uma “elite golpista”, organizada pela “mídia” para derrubar o “governo popular”.
A fabricação de uma história caricatural, apoiada na dicotomia fácil, contraria a regra implícita da democracia, que é o reconhecimento da legitimidade da divergência. No PT e nos seus tentáculos acirra-se o extremismo retórico. Envenenado, o debate público afunda no pântano da intolerância, degradando-se em briga de rua. É nessa atmosfera impregnada que, como reação, configura-se uma narrativa simétrica, alicerçada em visceral aversão ao lulopetismo. De acordo com ela, o PT não passaria de uma “quadrilha” de celerados consagrada à espoliação do país, enquanto os governos lulopetistas representariam um longo, insuportável parênteses na gloriosa jornada nacional.
A crise do governo de Dilma Rousseff inflama a nossa “guerra de memória”, que se esparrama perigosamente dos casulos da internet para o cenário da praça pública. Numa ponta, um Lula acuado, quase ensandecido, convoca o “exército de Stédile”. Na outra, patéticos radicais de salão pregam o extermínio do lulopetismo a golpes judiciais. Quando se celebram os 30 anos do fim do regime militar, renunciamos ao debate democrático. Preferimos esburacar touros alados virtuais com furadeiras de brinquedo.
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