Que me perdoem os marxistas que acreditam que a violência é a parteira da história, mas aquela loura com o traseiro tatuado destruindo com um porrete improvisado os terminais de auto-atendimento do Congresso não estava ajudando a parir a história, e sim protagonizando um ato de fúria destruidora, dos muitos que o Congresso viveu na terça-feira. Por algumas horas, o símbolo supremo da democracia e da tolerância que é o Parlamento ficou na mão de algumas dezenas de agitadores bem treinados, chefiando uma turba inspirada por um "bom burguês" pernambucano, cuja heróica biografia inclui uma fuga dos horrores da ditadura militar para a douce France com mesada paga pela família.

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Agora, passado o estupor pela violência da manifestação do tal MLST, vêm os discursos tradicionais e a unânime condenação da baderna, mas não nos iludamos com esses pronunciamentos preocupados que afloram de todos os lados. O que estamos vivendo é um processo progressivo de desmoralização da autoridade do Estado. Não do governo, pois este parece se importar pouco com sua própria desmoralização se levarmos em conta a forma pela qual tratou os mensaleiros e o valerioduto. São as instituições do Estado – um ente perene que se coloca acima dos indivíduos e dos grupos que o compõem exatamente para moderar seus apetites e interesses e fazer prevalecer o interesse comum – que estão ameaçadas pela crescente desenvoltura com que os limites da legalidade são transpostos impunemente.

O Estado é desmoralizado quando governantes relutam em fazer cumprir a lei, quando aceitam passivamente que prédios públicos sejam invadidos, praças de pedágio depredadas, laboratórios de pesquisa de sementes destruídos em nome da antipatia para com os transgênicos, anos e anos de experimentação florestal vandalizados. O Estado democrático é desmoralizado quando a Justiça vê suas determinações caírem no vazio por falta de cumprimento e juízes e membros do Ministério Público não reagem à invasão de propriedades produtivas, saques ao patrimônio particular ou violências contra inocentes .

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O Estado é desmoralizado quando lideranças políticas se esmeram em piruetas verbais para "não criminalizar os movimentos sociais" mesmo quando atos criminosos tenham sido praticados ou quando intelectuais e líderes religiosos irresponsáveis interpretam e reinterpretam ao seu modo e de acordo com suas conveniências e ambições políticas os códigos legais, determinando o que é "burguês" e o que não é, fazendo tábula rasa da lei democraticamente instituída quando ela se opõe aos seus interesses ou crenças particulares.

Na análise do episódio de terça-feira, é necessário fazer algumas correções. Fala-se muito em "baderna", que o Aurélio define como "1. Grupo de rapazes. 2. Súcia, corja, matula. 3. Pândega, patuscada, estroinice. 4. Desordem, bagunça, bagunçada". O que aconteceu no Congresso não foi uma baderna ou uma pândega, como os vídeos apreendidos demonstraram. Foi uma operação cuidadosamente preparada e profissionalmente conduzida destinada a provocar exatamente os estragos que provocou. Portanto, não se tratou de um ato praticado por uma turba, uma multidão sem comando nem controle, e sim de uma operação em que a turba era simplesmente a massa de manobra e a bucha de canhão que serviu aos objetivos de seus comandantes. Não se tratou de uma explosão momentânea de azedume social contra a iniqüidade, a injustiça, a desigualdade. Não foi a gota d’água que fez transbordar corações cheios "até aqui de mágoa" como cantou Chico Buarque. Foi uma operação de agitação na mais pura e escarrada tradição das operações de agitação.

Junto com o Estado está morrendo também a ingênua imagem da cordialidade brasileira, que Sérgio Buarque de Hollanda transformou em um atributo coletivo e categoria sociológica. A cordialidade, na realidade, é um componente do comportamento individual de pessoas que escolhem o caminho da conciliação, da conversa e da acomodação, permitindo-lhes conviver com as diferenças de crenças e de opiniões; e da tolerância e do respeito aos outros para permitir que a vida em comunidade seja possível. É uma qualidade superior de caráter de indivíduos que preferem se submeter às regras do processo realmente democrático do que recorrer ao porrete da loura de traseiro tatuado para promover o parto da história.

Belmiro Valverde Jobim Castor é membro da Academia Paranaense de Letras e professor do mestrado em Organizações da FAE Business School.