O plebiscito sobre o acordo de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), previsto para o dia 2 de outubro próximo, põe o povo da Colômbia diante de um dilema ético talvez sem precedentes em sua história recente: é melhor pôr fim a uma guerra que já dura mais de 50 anos e deixou cerca de 250 mil mortos ou aprovar um pacto que atenta contra a Constituição do país e os tratados internacionais de direitos humanos?
São muitos os aspectos relacionados ao acordo que preocupam. O principal deles é a atenuação das penas para os crimes contra a humanidade cometidos de ambos os lados – dos guerrilheiros e dos militares. O acordo é um desrespeito ao direito penal constitucional colombiano. Um de seus enunciados diz que pessoas, guerrilheiros ou militares, que cometeram crimes de lesa-humanidade, tais como assassinatos, sequestros, torturas, massacres, violação de crianças, estupros, recrutamentos de menores etc. poderão ocupar cargos públicos.
Levamos décadas para chegar aos padrões de proteção dos direitos humanos que temos hoje para jogar tudo por terra
Ademais, há uma desproporção sem precedentes entre a gravidade dos crimes e sua punição. Penas, mesmo que brandas, são substituídas por serviços à comunidade. Contudo, a Justiça não se compromete a supervisionar se de fato o serviço foi cumprido. De tal forma que, por exemplo, se o réu é condenado a quatro anos de prisão (a pena máxima é de oito anos) e se compromete a construir três creches e três enfermarias ao longo desse período, e o faz em dois anos, ao concluir o trabalho está livre e nada deve mais à Justiça.
No que diz respeito à reparação das vítimas, não há um só artigo do acordo que trate do tema, mesmo quando se sabe que as Farc possuem uma fortuna acumulada nesses mais de 50 anos de atividade ilícita. O acordo não exige que os ex-guerrilheiros ponham um só peso colombiano, ou repatriem uma só moeda estrangeira, para a reconstrução do país ou realocação e recuperação das vítimas.
O mesmo silêncio vamos encontrar sobre o tema do narcotráfico. Não se vê uma linha dedicada a reconhecer a atividade narcotraficante das Farc. Nem se exige que entreguem as rotas do tráfico de cocaína, os laboratórios, os contatos com os cartéis. Nada!
Também chama atenção a chamada “Justiça Transicional” criada pelo acordo especialmente para julgar os guerrilheiros e os militares. Isso equivale a dizer que não será o Poder Judiciário colombiano que julgará os envolvidos. Nem mesmo se sabe se vai ser aplicado o Código Penal colombiano, nem a quem os juízes dessa “Justiça Transicional” responderão”. Sabe-se que serão estrangeiros, mas não se sabe como se relacionarão com o Poder Judiciário e as leis e a Constituição colombianos.
Para a comunidade internacional, esse acordo é um escândalo e abre um precedente grave e perigoso no julgamento de outros autores de crimes contra a humanidade no futuro. Levamos décadas para chegar aos padrões de proteção dos direitos humanos que temos hoje para jogar tudo por terra ao abrir uma chaga contra a humanidade.
Os líderes da campanha pelo “não” ao acordo na Colômbia – dentre eles, o ex-presidente Álvaro Uribe e o senador Iván Duque – defendem que o acordo pode ser renegociado, mas isso não está garantido. O que não pode acontecer é deixar o povo ser levado, no plebiscito, como quer o presidente Juan Manuel Santos (grande defensor do “sim”), ao “acordo do tudo ou nada”, porque esse não é o melhor a que se pode chegar.
Talvez o mais indicado fosse desagregar o acordo retirando dele o que é contrário ao direito internacional humanitário, e discutir seus termos sob os auspícios do Tribunal Penal Internacional. Assim, teríamos um documento muito mais democrático, referendado nacional e internacionalmente.