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Artigo

O último imperador da China

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Deng Xiaoping, o sucessor de Mao Tsé-Tung, governou a China entre 1978 e 1989. Dez anos antes de chegar ao pináculo do Partido-Estado, Deng foi vítima das perseguições da Revolução Cultural. No timão, alertou para os riscos da concentração do poder numa única pessoa, que “abre caminho para o governo arbitrário”, e estabeleceu o sistema de direção coletiva. O 19.º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), que acaba de se encerrar, fechou o parênteses de três décadas de direção coletiva. Xi Jinping, coroado como líder presciente, inconteste, ocupou o trono que foi de Mao. A China atrasou o relógio em 40 anos.

Na antiga China imperial, o “governo do homem” e o “governo da lei” eram conceitos idênticos. O imperador, “Filho do Céu”, governava “tudo que existe sob o firmamento” e seus decretos deviam ser fielmente implementados pelas autoridades burocráticas. A China maoísta atualizou a tradição imperial. O PCC inscreveu o “Pensamento de Mao” na pedra de seu estatuto, que vale como constituição chinesa. O desvio da orientação maoísta tornou-se, por essa via, um ato de traição contra o Estado. Agora, o 19.º Congresso do PCC fez o mesmo com o “Pensamento de Xi Jinping”. Xi elevou-se ao estatuto de um segundo Mao.

A entrega do poder absoluto a um novo Grande Timoneiro é uma tentativa de preservar o Partido-Estado

Deng nunca tentou se equiparar ao fundador da República Popular da China. No estatuto do PCC, inscreveu-se a “Teoria de Deng Xiaoping” – mas, na língua chinesa e nos códigos arcanos do comunismo chinês, “teoria” situa-se um patamar abaixo de “pensamento”. A diferença, que parece sutil, indicava uma mudança profunda. Deng instituiu as normas tácitas de que o líder governaria por apenas dez anos e buscaria produzir consensos na cúpula do Partido-Estado. Xi dissolveu os dois tabus de uma só vez. Do 19.º Congresso, não emergiu o nome de um sucessor, ao contrário do ocorrido nos conclaves de meio mandato de Jiang Zemin e Hu Jintao, seus antecessores. A volta ao passado, uma manobra destinada a preservar o Partido-Estado, lança as sementes de sua destruição.

O regime de partido único não abole a política. A pulsão da divergência manifesta-se no interior do partido, como concorrência faccional mais ou menos regulada. As violências da Revolução Cultural foram guerras de extermínio conduzidas pela direção maoísta contra facções dissidentes. O sistema de direção coletiva engendrado por Deng buscava acomodar as diferentes vertentes do partido, excluindo o recurso à violência e cartografando antecipadamente as transmissões de poder. Nele, estava implícito um reconhecimento embrionário da pluralidade política. Potencialmente, a “democracia de fidalgos” evoluiria rumo a uma gradual abertura política, estendendo para baixo o direito à divergência. A entronização de Xi descarta essa hipótese benigna.

Nos cinco anos iniciais do governo de Xi, uma incessante campanha de expurgos, conduzida sob o rótulo do combate à corrupção, dizimou os altos escalões do Partido-Estado. Milhares de quadros intermediários foram processados e afastados. À temida comissão disciplinar do PCC compareceram 18 titulares e 17 suplentes do Comitê Central, algo que implica quase uma morte política. A repressão oficial, para além dos limites do PCC, acelerou-se desde 2015. Mais de 300 advogados e ativistas de direitos humanos foram processados ou presos sob acusações derivadas do artigo 105 do Código Penal, que trata da “subversão do poder estatal”. Segundo um artigo publicado na revista teórica do partido, cuja autoria oculta é atribuída a Xi, “não existe 99,9% de lealdade; é 100%, pura e absoluta lealdade, nada menos”.

O núcleo do pensamento de Xi encontra-se em outro texto, de sua explícita autoria: “Leste, oeste, norte ou sul – o partido lidera todas as coisas”. A reconcentração radical de poder não emana de uma sensação de estabilidade, mas do temor de uma implosão. Na transição em curso, marcada pela expansão da classe média e pela retração das taxas de crescimento econômico, o espectro que ronda as noites do PCC é o desmantelamento da URSS. A China é palco de um milhão de motins fragmentários, que se sucedem nos níveis local e provincial, abaixo dos radares. A entrega do poder absoluto a um novo Grande Timoneiro é uma tentativa de preservar o Partido-Estado, protegendo-o das forças centrífugas que destroçaram o antigo “império vermelho”.

O brilho da China na paisagem da ordem mundial ganhou nova intensidade desde a posse de Donald Trump. Sob o pano de fundo do nacionalismo isolacionista de Trump, Xi apareceu como campeão da globalização e do multilateralismo. Contudo, o 19.º Congresso do PCC puxou a bainha da calça, descerrando o calcanhar de Aquiles da nova potência. Mao, o último imperador da China, governou despoticamente um país miserável, devastado por ondas de fome. Xi, que almeja arrebatar o título de Mao, acalenta o sonho de governar despoticamente um país industrial, urbano, moderno, mais próspero e diversificado. O relógio não retrocede impunemente. Xi não será um segundo Mao, por mais que o Partido-Estado insista nessa utopia.

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