O que faz alguém pensar que questões de sentimento religioso seriam insignificantes? Certo, voltamos ao “Natal do Porta dos Fundos”, vulgo PdF. Como eu disse, é uma oportunidade boa demais para desperdiçar. Já lancei a hipótese de que o especial de Natal seria um balão de ensaio, um experimento para demonstrar que a comunidade cristã brasileira seria um solo fértil de ameaças à democracia e à liberdade de expressão – hipótese comprovada logo depois, com a admissão por Fábio Porchat em 30 de dezembro, em artigo no jornal O Globo, de que o especial teria sido “uma bombinha lançada em um bueiro, para desentocar baratas e monstros”.
No meu primeiro artigo, contemplamos a questão da liberdade de expressão e da capacidade dos cristãos brasileiros de absorver o impacto da crítica sem perder a linha, no sentido político – sem jogar para o alto a responsabilidade com a manutenção do pluralismo democrático e a proteção das regras de engajamento. Agora vamos examinar o outro lado da moeda: houve crime, ou algo próximo disso? É permissível ferir o sentimento religioso de alguém? Há um bem a ser tutelado aqui?
Sim, o crime existe
Está no artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa”.
Temos aqui três especificações: em primeiro lugar, a pessoa que mantém crença religiosa ou função em culto religioso tem garantida a proteção de sua dignidade contra tentativas de ultraje ou destruição pública de reputação motivadas por divergência religiosa. O crime de escárnio de pessoa por motivo religioso é assim tipificado nesse artigo. O que se protege, aí, não é diretamente o sentimento religioso em si, mas a dignidade da pessoa que tem a crença e o sentimento religioso.
A segunda especificação diz respeito ao impedimento ou perturbação de cerimônia ou ato de culto. Temos, aqui, algo bem mais definido; o gesto individual ou coletivo de cultuar (ou seja, de estabelecer e cultivar a relação com o sagrado) recebe proteção estatal. O texto certamente tem em vista o sentimento religioso, e até mais do que isso – os gestos coletivos e públicos que expressam a devoção. Assim, a piedade religiosa é claramente um bem a ser tutelado.
A terceira especificação protege não o fenômeno do culto em si, mas a sua simbólica: “o vilipêndio público de ato ou objeto de culto religioso” diz respeito à reputação pública e à dignidade das pessoas participantes de certo culto religioso, sendo seu ato de associação para fins religiosos protegido contra a vilanização. De novo, o bem aqui protegido é a expressão coletiva e pública da religiosidade.
De modo que a relação de fé, ou relação religiosa, ou a religiosidade, ou a piedade, em si, são claramente protegidos pela nossa legislação, como função inseparável da pessoa religiosa e tendo sua dignidade protegida por extensão.
O “crime” do PdF
Em seu artigo, Fábio Porchat observou que satirizar a Bíblia não seria contra a lei, assim como brincar com a imagem de Deus não seria contra a lei. De fato, a zombaria e a crítica contra crenças religiosas não equivale per se a escárnio contra a pessoa humana, sejam elas fiéis ou ministros, uma vez que não envolve necessariamente individualização e personalização da crítica, nem negação per se da dignidade da pessoa, nem a inviabilização per se da vida religiosa coletiva. O que pode ser matéria de debate é se o “vilipêndio” traz sentido estritamente físico, com a profanação in loco de objetos e atos de culto; ou se pode ter um sentido moral, de desqualificação e dessacralização conceptual dos atos e dos objetos de culto.
Sustento que o sentido estritamente físico é o único aceitável; pois o sentido “moral” introduziria um terrível paradoxo, já que, em se considerando a negação conceptual de certa sacralidade um crime, toda a crítica a crenças e instituições religiosas seria interditada. Isso equivaleria ao fim das liberdades fundamentais de expressão e opinião, do sagrado direito ao proselitismo da religião e das crenças, e a instauração de lei antiblasfêmia, contradizendo a Resolução 16/18 da ONU, de 2011, o Plano de Ação de Rabat, e de toda a direção tomada pelo “Processo de Istambul”.
Desse modo, em minha humilde opinião, e divergindo de alguns juristas importantes, os pobres diabos não cometeram nenhum crime com exceção do “crime" da tolice, que não enseja penalização em nosso sistema jurídico.
Mas o assunto não se encerra aí; se houve malfeito, “crime” ainda que entre aspas, é preciso identificá-lo com mais clareza. O fato de que algo seja legal não significa que deva ser encorajado. É permitido fumar, mas o governo faz campanhas contra o fumo pelo bem da saúde pública, não é?
Entendo que o “crime” do PdF está na incapacidade de compreender o significado do sagrado para a vida humana. Não no sentido meramente conceptual, mas no sentido moral. Com sua recalcitrante e anual zombaria da religião, o PdF faz transparecer uma espécie de “autismo espiritual”, uma incapacidade de se conectar com a experiência do sentimento religioso, de empatizar com ela e respeitá-la. Ora, esse autismo espiritual demanda explicação. De onde saiu isso?
A mente W.E.I.R.D.
Já mencionei no último artigo a designação W.E.I.R.D. (em inglês, “estranho”) empregada por alguns psicólogos morais com referência à mentalidade moral elitizada das sociedades modernas: “Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic” (Ocidental, Educada, Industrializada, Rica e Democrática).
Pessoas W.E.I.R.D. são gente universitária, cultivada na educação liberal, com maior poder de consumo e que obtêm a ressonância de seus valores na cultura pop, no cinema, no marketing e nas big techs contemporâneas. São geralmente progressistas (mesmo que apenas nos costumes), individualistas, secularizadas, altamente conscientes de questões ambientais e de representatividade social, e apoiadoras das modernas políticas de identidade. E, embora altamente hedonistas e individualistas, com comportamentos considerados imorais pela religião, se mostram extremamente moralistas ao ponto do dogmatismo quando seus ideais emancipacionistas estão em jogo. Parece um paradoxo.
Uma explanação genial para esse paradoxo da mentalidade W.E.I.R.D. foi apresentada pelo psicólogo social Jonathan Haidt, em sua obra The Righteous Mind: why good people are divided by politics and religion. O YouTube tem uma palestra introduzindo suas teses principais. Haidt desenvolveu com sua equipe a “Teoria dos Fundamentos Morais”, uma teoria original sobre a psicologia moral humana.
Segundo Haidt, retomando concepções de David Hume sobre os sentimentos morais, a moralidade humana não seria resultante de a prioris racionais, segundo a tradição deontológica representada em Immanuel Kant, nem de cálculos pragmáticos a posteriori, segundo a tradição utilitarista representada em Jeremy Bentham, mas das emoções humanas.
Mas “emoções”, aqui, não são uma referência a impressões subjetivas e inverificáveis; Haidt, lançando mão do melhor da psicologia evolutiva contemporânea e da evidência das ciências comportamentais, sustenta que há seis áreas de sentimentos morais que emergiram e foram selecionadas por meio de um processo evolutivo darwiniano, operando como módulos cognitivos-morais: “Cuidado/evitar o dano”, “Equidade/evitar injustiça, “Lealdade/evitar a trapaça”, “Liberdade/evitar a tirania”, “Autoridade/evitar a rebeldia”, “Santidade/evitar a profanação”. Cada um desses pares corresponde a desafios de sobrevivência individual e coletiva que foram enfrentados por centenas de milhares de anos com sucesso por grupos humanos cujos comportamentos eram condicionados por tais sentimentos e hábitos neles baseados. Por exemplo: indivíduos e grupos com inclinação ao cuidado altruísta tinham mais condições de proteger a prole e as criações. Nossos sentimentos morais seriam, então, aspectos da natureza do Homo sapiens sapiens.
Criativamente, Haidt propôs a existência de um “paladar moral” com essas seis áreas de percepção. O paladar moral seria universal –, fato que vem se comprovando na investigação empírica de Haidt e sua equipe –, mas isso não significa que todas as culturas e sociedades tenham as mesmas regras morais; cada cultura tem a sua própria “culinária” moral, ligada a aspectos históricos e religiosos particulares. Mas o paladar moral é o mesmo! Como ilustração: esquimós não têm o “doce” em sua culinária, porque não há mel nem frutas no Ártico, mas têm a capacidade de sentir o doce; ela apenas está dormente.
Ora, estudando os sentimentos morais de indivíduos contemporâneos, Haidt descobriu que no mundo inteiro e nas mais diversas culturas as pessoas trabalham com todos os seis receptores morais, com apenas uma exceção curiosíssima: os indivíduos W.E.I.R.D. Haidt descobriu que esses indivíduos operam, na maior parte do tempo, com dois ou três fundamentos morais – “cuidado”, “equidade” e “liberdade” – superestimulados, e que mostram níveis variados de atrofia no funcionamento dos outros três receptores morais – “lealdade”, “autoridade” e “santidade”. Indivíduos W.E.I.R.D. têm dificuldade de entender discursos, normas e instituições baseados nesses três fundamentos morais, que para eles soam como limitações à liberdade, crueldade, autoritarismo e ilusão.
Esquimós morais
É como se esses indivíduos fossem esquimós morais. Não é que eles sejam absolutamente incapazes de ter sentimentos morais nessas três áreas; é que elas estão atrofiadas, suprimidas, manifestando-se de forma tímida e inconsciente. Como analogia: na sua culinária moral, falta o sabor doce. Desacostumados, reagem com caretas ao sabor “estranho”.
A bem da verdade, Haidt observa que indivíduos W.E.I.R.D. mostram algumas compensações cognitivas, a despeito dessa falha; eu tendo a ser menos otimista. Como o nosso cientista sugere, a mentalidade W.E.I.R.D. surgiu no Ocidente como fruto de um processo de atomização social e individualização radical. Parece um efeito colateral.
Na medida em que capitalismo de consumo, Estado Contratual Liberal e educação construtivista se impõem, formamos pessoas com menos sentido de coletividade e comunidade. Assim os fundamentos morais mais associados ao protagonismo individual são supervalorizados, e os fundamentos morais mais associados à coesão social perdem importância.
Aos poucos, vai se construindo uma gramática moral pobre que não consegue veicular os sentimentos morais comunitários, e com isso a religião – segundo Haidt, um dos mais importantes sistemas de socialização – perde inteligibilidade. Nas palavras do filósofo Roel Kuiper, sofremos uma perda de capitais morais.
E assim surgem os esquimós morais – os indivíduos cuja vida moral se vê resumida a autoafirmações libertárias, e que não conseguem entender bem o que significam promessas, lealdades, pactos, autoridades, tradições e – nosso ponto principal – o sagrado.
Seria o Porta dos Fundos uma tribo de esquimós?
Penso que nossos amigos do PdF não são intencionalmente imorais. Eles apenas têm um universo moral empobrecido. Por outro lado, defendem seus valores morais com paixão e ardor para nenhum fundamentalista botar defeito – basta ver sua indignação contra o “autoritarismo” e o “fascismo” nas redes sociais.
Considerando que a turma do Porta dos Fundos se vê numa cruzada moral pela emancipação humana, faz todo o sentido entender que eles operam de forma tipicamente moralista a partir da mentalidade W.E.I.R.D., e tendem a ver discursos, instituições e práticas que afirmam os fundamentos morais mais prossociais e comunitários como coisas abusivas e imorais.
Nesse ponto eu realmente sou menos positivo que Haidt; entendo que essa nova configuração moral liberal-progressista é a materialização do que o antropólogo de Chicago Philip Rieff chamava de “Homem Psicológico”; um paradigma antropológico contraditório, centrado na afirmação do self e construindo uma relação autofágica do indivíduo com a ordem social, fazendo-o serrar o próprio galho espiritual. Em termos simples: tolice mesmo.
Leis antiblasfêmia, não; proteção à religiosidade, sim
Deixando o PdF de lado por um momento, chamo atenção para a contribuição que a Teoria dos Fundamentos Morais pode nos trazer para pensar a legislação brasileira e as políticas públicas na área de religião. O ponto é que temos evidência de campos diferentes, seja a história, a antropologia e, agora, a psicologia moral evolutiva, para considerar que a devoção coletiva ao sagrado é uma dimensão importante da vida moral e contribui para o tecido social. A tutela estabelecida pelo direito não se dirige a uma fantasia jurídica, mas a um bem objetivo. E por isso, o Estado deve dar proteção aos atos de culto e a movimentos de piedade religiosa, e até mesmo recomendá-los quando se mostrarem paralelamente promotores do interesse público.
E, por outro lado... gestos como o do PdF deveriam ser desencorajados, ainda que permitidos. Não se pode transformar toda a moralidade em legislação; mas, quando sabemos que certa forma de moralidade pode trazer prejuízos públicos, a questão deixa de ser meramente privada.
Penso que coisas como o “Especial de Natal” deveriam ser permitidas como permitimos o cigarro; sem financiamentos estatais, sem incentivos ou privilégios de qualquer tipo. Políticas públicas deveriam ser estabelecidas para ensinar sobre discursos de ódio e desrespeito, e o exemplo do PdF poderia ser citado como um modelo do que não fazer para promover paz social e uma cultura de respeito. E, quando o mesmo exemplo for citado em nome da liberdade de expressão (o que seria correto), seria salutar levantar a questão do sagrado e de sua importância civilizacional.
O “sagrado” escondido no PdF
Jonathan Haidt observou que, mesmo quando certos fundamentos morais estão ausentes da “culinária moral” de algumas pessoas, o paladar moral continua ativo naquela área. Ele apenas está dormente ou reprimido. Porchat nos dá uma pequena evidência disso em seu artigo: “Como você leva a sua vida é problema seu; como eu levo a minha, meu. Até porque o que é sagrado pra você não é pra mim e vice e versa”.
Os artistas do PdF podem até ser indiferentes ao sagrado do Cristianismo; mas eles têm seus sagrados também. As coisas que para eles estão acima de tudo, acima do questionamento, e que traduzem a vida realmente autêntica. O problema, segundo Haidt, é que geralmente os W.E.I.R.D. têm dificuldade de articular verbalmente a natureza religiosa de suas devoções.
Teríamos um mundo bem mais honesto se as pessoas abrissem o jogo sobre seus verdadeiros deuses, em vez de apenas zoar os deuses dos outros.
Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É atualmente diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos da Secretaria Nacional de Proteção Global.