A Gazeta do Povo de 19 de agosto publicou artigo da colega promotora de Justiça Cristina Corso Ruaro, em que se defende a manutenção da criminalização da posse de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei 11.343/2006). O tema está em julgamento no STF. O argumento central consiste na crença de que o uso de drogas afeta (sempre) terceiras pessoas, porque destrói famílias, ambientes de trabalho e boas práticas de convivência social.
O discurso, marcado pela ideologia de defesa social, vem amparado em algumas imagens falsas. Em primeiro lugar, não se pode assumir como “verdade absoluta” a existência de uma relação necessária entre consumo e dependência. Esse vínculo é uma crença e não tem nenhuma base científica. A maioria absoluta dos usuários de drogas não é dependente. Por exemplo, a maioria das pessoas que consomem álcool não padece de alcoolismo.
Em segundo lugar, o consumidor de drogas não integra uma subcultura. O consumo, o comércio e a produção de drogas estão presentes em todas as camadas sociais, ainda que a criminalização só opere nas classes subalternas. Isso se explica porque a “identidade social” imuniza as classes sociais favorecidas, enquanto a “identidade degradada” amplia o processo de criminalização, que se orienta sempre por estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias dos agentes do sistema penal.
O grande problema é adequar um programa de proibição do próprio corpo com um programa democrático de Estado de Direito
Em terceiro lugar, o consumidor de drogas é um sujeito integrado normalmente na dinâmica da produção capitalista. O uso, portanto, não abre as portas da casa do crime. Na realidade, as carreiras criminais são explicadas pela própria existência da proibição, que eleva o preço da droga: quanto mais repressão penal, mais alto o preço da droga pela lógica da oferta/procura.
Em quarto lugar, o estado de saúde dos consumidores de drogas não é algo irreversível. O processo de tratamento depende de variantes distintas (tipo de drogas, pessoal, social etc.). Êxitos estão condicionados pela disposição pessoal e pela qualidade do tratamento. Por isso, uma política efetiva para proteção da saúde pública, antes da repressão penal, deveria estar baseada na redução de danos, buscando espaços reservados para consumo responsável de drogas, auxílio de emergência ou mediante a entrega controlada da droga por indicação médica.
Por fim, não é possível aceitar que autolesões possam ser objetos de um programa de criminalização – aliás, um programa básico do liberalismo. Apenas o uso abusivo de drogas, lícitas ou ilícitas, a depender do contexto, pode causar problemas familiares, no trabalho e no convívio social. Na verdade, o grande problema é adequar um programa de proibição do próprio corpo com um programa democrático de Estado de Direito. A atual política de controle de drogas avança para condições totalitárias. Para avançar numa sociedade democrática é preciso ser tolerante com aqueles que, mesmo contra nossa vontade, decidem usar drogas como meio recreativo.
Recordar Bertolt Brecht ajudaria: “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.
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