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É próprio das religiões políticas conduzir ao totalitarismo. A religião política não assume apenas a parte irredutivelmente sagrada, ou “religiosa”, da dimensão política: ela baseia a política e a religião numa mesma empreitada de regeneração do homem pela transformação radical da ordem social.
O utopismo dá a entender que o mal não habita no coração do homem, e que se pode extraí-lo da sociedade, na medida em que ele seria o efeito de más estruturais sociais. A aspiração à tábula rasa em que o imaginário progressista se baseia – o que é a revolução, além de uma pretensão de recomeçar a história do zero? – se acompanha de uma pretensão à reconstrução racional da dimensão social a partir de princípios dos quais já não será permitido desviar.
O utopismo erige um ideal absolutamente incandescente, dando a entender que a história humana até o presente se desenrolou nas trevas e que é preciso reconstruir integralmente a ordem social a partir de um plano perfeito, que não poderá ser infringido. Numa tacada, a sociedade é radicalmente absorvida pelo futuro e sua experiência histórica é desqualificada.
Adivinha-se, então, que as instituições, bem como as tradições, recebam o selo da invalidade: seu valor é meramente prático e é perfeitamente possível jogá-las no lixo da história, sem prudência nem reserva. É que a ordem humana passa a ser uma pura projeção mental, e deve livrar-se da ideia de natureza, que poderia limitar intrinsecamente a tentação de onipotência por parte dos novos demiurgos.
Uma coisa é remanejar a comunidade política, transformá-la, reformar suas instituições; outra coisa é pretender criar o mundo, ou desconstruir um mundo para então recriá-lo. O furor niilista que anima a paixão da desconstrução é impelido para uma busca religiosa do homem original, do homem de antes da queda, de antes da divisão do mundo em sexos, em religiões, em civilizações, em povos e em Estados.
Essa antropologia negativa, que retrata um homem mais livre porque mais absolutamente desencarnado, representa o embasamento filosófico do regime diversitário. No entanto, o homem liberto da cultura e da história não está livre: está nu – lançado, solitário, num mundo que lhe é estranho, e condenado a uma triste errância.
Desse ponto de vista, a teoria do gênero, sobre a qual muito se tem falado há alguns anos, não é tanto uma loucura passageira adotada por ideólogos exaltados, mas o remate mais natural de uma filosofia demiúrgica, que pretende criar o homem a partir do nada, de um retorno ao indeterminado, ao informe, ao mundo de antes do mundo, a partir da fantasia de onipotência que é, também, uma fantasia de autoengendramento.
A fúria da desconstrução é uma fúria destruidora, de homens que se deixam apanhar por uma fantasia de onipotência demiúrgica e que querem fazer o mundo recomeçar do zero. Somos aqui as vítimas da utopia de 1968, que deverá um dia ser considerada pelo que realmente foi: uma terrível fantasia regressiva, que busca devolver à humanidade sua pureza virginal, a pureza de uma infância ainda não corrompida pela lógica do mundo adulto e das instituições.
O homem novo já não é determinado pelo passado, mas pelo futuro, pela utopia social que os engenheiros sociais – que dizem ter um conhecimento científico do bem – pretendem implantar.
Por mais que o homem seja mutilado em suas profundezas, ele tende a resgatar certas necessidades existenciais que acabará por projetar na política. O homem precisa de enraizamentos e, se essa aspiração fundamental lhe for contestada, ele se voltará inevitavelmente para a filosofia política que demonstre uma sensibilidade particular a essa busca.
Ninguém se volta para o conservadorismo para morar num museu, mas para reencontrar a melhor parte da herança, que nos preserva da tentação demiúrgica que falsifica a aspiração ao progresso ao fazer o homem esquecer sua finitude. O conservador, em outras palavras, percebe como ameaça a abordagem tecnicista do mundo simbólico.
No entanto, o povo não se compõe de robôs programáveis ao infinito. Ainda existem homens não reformados, ou que resistem a essa reeducação. É nessa parte, que é simultaneamente a memória da origem e aspiração à transcendência, que se encontra a possibilidade de resistir à tirania e ao totalitarismo. O homem não é absolutamente plástico e maleável. Quanto mais ferido em suas disposições mais naturais, maior o risco de ele se revoltar ou, ao menos, entrar em dissidência, discreta ou barulhenta. Não é possível desenraizar e transplantar povos à vontade, sem provocar imensas tensões.
A negação das culturas é uma negação do real. O utopismo cultiva uma psicologia política particular: quando a utopia é desmentida pelo real, ela acusa o real e entende que deve endurecer a aplicação de sua política. A tentação totalitária do multiculturalismo lhe vem justamente dessa constatação de que o real o desautoriza.
Quando são atacadas a soberania nacional, a identidade histórica dos povos, a transmissão cultural ou as raízes civilizacionais do mundo ocidental, sabota-se mais ou menos conscientemente aquilo que permitiu a sobrevivência da democracia, aquilo que a alimentou. Os homens não lutam contra o totalitarismo somente para defender seus direitos, mas também para defender seu país, sua cultura, sua civilização.
Uma democracia desenraizada, estranha ao patriotismo e à memória e feita apenas de indivíduos retraídos em seus direitos, será provavelmente incapaz de se defender no dia em que for realmente atacada. Isso é o que vemos atualmente diante do perigo islamista. O utopismo e o desejo de desenraizar o homem para fazê-lo renascer num paraíso enfim advindo sobre a terra são o fio condutor do totalitarismo.
Os trechos acima foram retirados das últimas páginas de O multiculturalismo como religião política, do acadêmico quebequense Mathieu Bock-Côté, que a É Realizações publicou no Brasil. Trata-se de um dos melhores livros que li recentemente, e que explica de forma didática as transformações da esquerda após 1968. Exorto o leitor a mergulhar na obra completa, para compreender melhor o raciocínio que leva a tais conclusões. O progressismo utópico ameaça nossa civilização, e só é possível combater o perigo conhecendo bem suas origens.
Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.