Bolsonaro ao lado do personagem Zé Gotinha, com o plano de vacinação contra a Covid-19 em mãos. Imagens ilustrativas.| Foto: Evaristo Sá/AFP
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Uma regra não escrita da natureza humana dita que o poder não comporta vácuo. Por toda a sociedade, essa noção é bastante espraiada e clara, mesmo não sendo dita, tampouco ensinada - na ausência de quem possa exercer o poder, o vazio será preenchido por outro agente. Este axioma manifesta-se nas micro relações humanas – família, emprego, amigos, até chegar ao plano macro das relações jurídico-institucionais – entes da Federação, governos etc. No Brasil de 2020, em plena pandemia, o vácuo do governo federal em normatizar protocolos nacionalmente, por manifesta recusa em aceitar a realidade, levou todos os estados, e até municípios, a correr para – mal ou bem – regrar o enfrentamento da emergência sanitária posta.

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Como toda excentricidade jurídica, deu-se à luz a mais esta jabuticaba. Em meio a uma crise de saúde sem precedentes em gerações, na esfera federal, moveu-se a Administração para ditar o que deveriam fazer as empresas no pagamento de tributos, salários e demais obrigações, deixando o cerne, qual seja, como deveria portar-se a sociedade, num deserto de esclarecimento. E, no campo das informações, o vácuo também não prospera. Ausente uma diretriz nacional sobre o que era real, necessário e esperado, proliferaram, e seguem triunfando, as mais variadas indicações, temores, boatos e crendices: de ozônio a microchips embutidos em vacinas, passando pela indicação de vermífugos.

O mesmo verifica-se no espectro normativo; Brasil afora, tem-se a mais variada sorte de procedimentos para restaurantes, salas de cinema e locais de circulação de pessoas. Viseiras, máscaras, luvas, ou todos deles juntos. Um metro, dois metros, um metro e meio. Mesas em local aberto, mas proibidas em calçadas. Bares funcionando, e pessoas de bolhas diferentes confraternizando sem o menor pudor em enxergar que a mistura de esferas de convívio segue potencialmente explosiva para a disseminação do vírus ainda não debelado.

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E o relaxamento ou não no funcionamento dos mais diversos estabelecimentos seguiu então a lógica local da política-miúda. Saiu-se “melhor” o setor mais articulado com o poder local. Tudo isso porque cada ente foi deixado a legislar em caráter precário sobre tema de relevância nacional com indisfarçado boicote do ente máximo sobre as mais diversas cautelas necessárias.

A letra da Constituição Federal, em seu art. 24, XII, regra sobre legislar em matéria de previdência social, proteção e defesa da saúde: competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Contudo, em tempos de negacionismo escancarado, vê-se, e viu-se até aqui, postura diuturna de negar a gravidade da situação pelas autoridades federais. Não é preciso ir adiante em relatar o sabido.

Passados oito meses do que poderia ter durado três, e vendo o noticiário trazer alvíssaras notícias sobre vacinas em fase final de teste no mundo desenvolvido, inquietaram-se os governadores, uma vez mais, diante da omissão federal, e decidiram desbravar eles mesmos alternativas por conta. São Paulo por meio de seu governador, mais por cálculo político, decidiu, desde cedo, antagonizar com o Governo Federal, assumindo protagonismo e editando normas como o Plano São Paulo – Decreto 64.881/2020. Mais recentemente, o mesmo mandatário decidiu seguir adiante com planos de iniciar a sua vacinação indicando datas e até um esboço de cronograma.

Surge então, trôpego, o Governo Federal buscando “na marra” centralizar as iniciativas na busca por liderança e protagonismo. O movimento foi recebido com choque, e os demais estados viram-se numa situação juridicamente confusa – a União que até então seguiu pela via do terraplanismo ao minimizar a situação, agora, corre ao centro do palco e nega aos demais qualquer autonomia. A ameaça escalou, com as bravatas de sempre, vociferando com a possibilidade de confisco de vacinas, e hoje tem-se inclusive o risco de que a imunização da sociedade seja – também ela – judicializada perante o Supremo Tribunal Federal.

Mais uma vez, nos vemos diante da máxima sobre poder e vácuo. Mas não há axioma a equacionar o mais novo problema – preenchido o vazio, como colocar de volta o gênio dentro da lâmpada? Como regrar o que nunca foi feito por quem deveria, e convencer estados e seus governadores a aceitarem a liderança de quem até aqui apenas negou a realidade dos fatos sob o manto de grossa chuva de desinformação? O espaço preenchido será dificilmente cedido por quem teve de arregaçar as mangas e procurar sozinho suas soluções.

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Rodrigo T. Lamonato é advogado, gerente jurídico, pós-graduado em Direito do Trabalho pela PUC/SP, com extensão em Contratos pela FGV/SP e Compliance pelo Insper.