Expulso do panteão dos gigantes, diminuído pela debacle no gramado, nosso futebol mantém-se em cartaz. Esperava-se uma crise política, talvez a ansiada destituição de Ricardo Teixeira, o poderoso e duradouro chefão da CBF, mas o valente esporte bretão retorna manchado de sangue, cenário de uma história de brutalidade e horror.
O goleiro Bruno (Fernandes das Dores Souza), 25 anos, bonitão, possível integrante da seleção de 2014, abonado (só de salário recebe R$ 150 mil mensais), titular de um dos mais populares times brasileiros, o Flamengo, foi indiciado e preso, acusado de mandar matar a ex-namorada, Eliza Samúdio, que se recusara a abortar seu filho.
O sequestro e assassinato da jovem teria sido cometido por um amigo, ex-policial em Minas Gerais, adestrador de cães usados para eliminar parte do cadáver e um primo, menor de idade. A atual companheira do jogador foi denunciada por esconder o recém-nascido, finalmente entregue a uma instituição de caridade e, em seguida, a um avô, para depois à avó.
O fanatismo clubista é capaz de engendrar qualquer teoria sobre competidores e desafetos, mas a culpa não é do Rio, nem de Minas (terra natal dos protagonistas e onde ocorreu o crime), muito menos do Flamengo que recentemente teve outro de seus astros, Adriano, envolvido no noticiário policial e, por isso, barrado da seleção que disputou a Copa.
Simplistas, terrivelmente injustos, são os argumentos usados para apontar o futebol como responsável por aberrações cuja incidência talvez esteja em ascensão na medida em que torna-se galáctico. O esporte-rei, usina de tantos neomilionários, não pode ser responsabilizado pelas horrorosas deformações e desvios que ocorrem à sua sombra. Graças ao futebol milhares de jovens são resgatados da marginalidade e da miséria nos quatro cantos do mundo.
Em 1995, quando O. J. Simpson, estrela máxima do futebol-americano, riquíssimo, celebrado comentarista de tevê e ator, foi acusado de matar a facadas uma ex-mulher e o seu namorado, o esporte-espetáculo não foi colocado no banco dos réus, mas o racismo foi um dos protagonistas do mais espetacular julgamento de todos os tempos.
Indignada, a população negra dos EUA alegava que Simpson estava sendo julgado por ter ultrapassado a barreira do sucesso. Apesar das fortes evidências, o ex-jogador escapou da acusação criminal e acabou condenado apenas por crimes civis. Não apareceu outro suspeito.
Não é o caso do goleiro rubro-negro, também afrodescendente, que só conseguiu mobilizar em sua defesa os advogados que contratou. Bruno não matou, mandou matar, foi espectador e não se importou com a diabólica arquitetura do crime. Está nas primeiras páginas junto do noticiário dos derradeiros lances do Mundial graças à insondável dramaturgia contemporânea capaz de entrelaçar tão fortemente o épico com o monstruoso.
O que eventualmente aproxima Bruno do ex-melhor do mundo, Júlio César, não é o ofício comum de guarda-redes, goal-keepers, nem a dupla condição de ídolos caídos, mas justamente o contraste entre perversão e dignidade. O que apavora nesta história é a facilidade com que uma figura pública, adorada pelas multidões, é capaz de entregar-se à bestialidade.
Ao prometer que a Comissão Técnica para a Copa de 2014 voltará a contar com um psicólogo, o manda-chuvas Ricardo Teixeira foi bafejado pela inspirada percepção de que o futebol não se joga apenas com os pés e a cabeça (ultimamente entram as mãos): a alma também calça chuteiras.
Como todos os goleiros, Bruno foi treinado para perceber perigos e antecipar-se aos adversários. Faltou condicioná-lo para o vale-tudo da fama.
Alberto Dines é jornalista