O termo “espiritualidade” é cunhado de forma mais precisa no século 17, na França, e o seu berço de nascimento é de origem cristã. Assim também a terminologia “mística” tem sua origem no cristianismo. Ela ocorre de forma inesperada, representa um novo tipo de consciência. A consciência cósmica, que coloca o indivíduo num novo patamar de compreensão da realidade.
A mística aparece como expressão que se usa para textos ou níveis de interpretação quase que escondidos no texto. À medida que o processo avança na história do cristianismo, a palavra “mística” passa a ser usada para a alteração que acontece na alma quando se conhece muito o texto. Tem-se uma intimidade muito grande com o texto sagrado. A pessoa domina tanto, rumina tanto o texto, se aprofunda tanto nas questões mais agudas do texto que isto chega a ponto de ir alterando o que poderíamos chamar de percepção cognitiva das coisas. O intelecto é todo modificado.
A ideia de espiritualidade está associada a outro nível de consciência. Outro nível de experimentação do cotidiano. É o ponto mais alto da mente humana. Na verdade, é um conceito que vem de Aristóteles – o conceito de intelecto. Aristóteles entra na teologia latina no início do século 13, tendo em Tomás de Aquino o seu grande defensor. Nesta linha se constrói a ideia de um intelecto que independe da matéria. Neste sentido, reforça a ideia de que nosso espírito sempre está contaminado por elementos não espirituais – a matéria.
O místico é aquele que está atento não aos porquês muito distantes, mas às raízes vitais das coisas e pessoas totalmente próximas a nós. Novos olhos para ver a vida em outros nexos. Ouvidos para perceber a batida do coração do universo. Por isso, a mística não é uma profissão.
A experiência mística é um evento cognitivo. Ela afeta seu modo de ver o mundo, sua interpretação da realidade. Nesta experiência, o pé se fixa mais no chão da vida. É criada no interior do sujeito uma sensibilidade mais aguçada com as dores do mundo e se enxerga a transitoriedade das coisas. Engana-se quem acha que a experiência mística é alienação, êxtases e estados alterados. Claro que o indivíduo pode ser tomado de assalto pela presença do divino, mas, sobretudo, a relação com o divino é torna-lo mais humano e esta humanidade ser uma referência de gente como o sagrado sonhou para a humanidade.
É dentro desta compreensão de ser humano finito, transitório e efêmero que a espiritualidade saudável nasce. Não somos seres autossuficientes, eternos, semideuses; o universo não gira a nosso redor. Não! Vivemos num solo da falibilidade. Falta-nos algo. Nascemos com uma fratura existencial. No século 20, a mística Simone Weil disse: “O contato com as criaturas humanas nos é dado através do sentido da presença. O contato com Deus nos é dado através do sentido da ausência”. Em que mundo você vive? Já se fez esta pergunta? É um mundo estranho. Parece que está do avesso. Quais definições você usaria? Talvez você pense que “esta análise é muito pessimista”. Não acho que o mundo irá melhorar. Não precisa ser tão ruim ou mau como está; mas acreditar que irá melhorar, jamais.
É verdade que o mundo tem beleza e coisas extraordinárias. Por exemplo, a maternidade, a cura de uma pessoa em estado terminal, a reconciliação entre pessoas. Existe, sim, beleza na vida, mas o mundo no qual vivo é marcado por dores, traumas, sofrimentos e grandes angústias.
É neste vazio e incompletude que o sagrado age. Na cultura hebraica existe uma ideia traduzida pelo latim “ex nihilo”, que significa “a partir do nada”. O divino sempre faz algo a partir do nada. Quando a matéria foi reduzida ao nada, o surpreendente acontece. Na experiência da ausência, o ser humano percebe quem é – nada.
A espiritualidade tem a ver com a prática e o grau de intimidade que os santos têm com Deus. Há uma diferença ontológica entre o ser humano e Deus. Encontramos isto no encontro de Deus com Moisés, quando Deus disse: “Eu Sou – eu serei Aquele que serei”. Não há declinação no hebraico no presente. Nesta diferença ontológica Deus é, enquanto o ser humano é por graça. Por isso, se encontra mais graça na condição do vazio do que numa posição pecadora de se autoafirmar. Por isso Søren Kierkegaard afirmava que só quando algo é reduzido a nada é que Deus pode fazer algo novo.
Este sentimento de que nos falta algo nos acompanhará até a morte. É como disse o sábio hebreu Salomão, em Eclesiastes 3,11: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem”. Não fomos feitos para esta realidade. Nada aqui nos satisfaz. É correr atrás do vento.
Christopher Dawson defendia a ideia de que quando se perde a ideia de espiritualidade, no processo de secularização da cultura, a realidade se desfaz. Tendo em vista que a visão de espiritualidade medieval dá a compreensão do entrelaçamento da cultura ou realidade, ou seja, é algo integral – a vida da inteligência, a vida da oração e o trabalho –, à medida que a secularização se instala, a vida espiritual vai se desfazendo e, por sua vez, a cultura se dissolve. A cultura perde o valor. É como se tivesse a mesma importância um pão croissant e a obra de Shakespeare. Por quê? Porque tudo é cultura. Perde-se uma noção de hierarquia das coisas. Quando se perde o ordenamento das coisas no mundo, tudo vira mera banalidade ou futilidade. As coisas passam a se resumir em si mesmas. Ou seja, trabalhar é só para ganhar dinheiro, por exemplo. Perde-se a noção do que ele significa na prática e o seu resultado social. Corpo vira só instrumento de consumo. Quando a vida espiritual fica só no espiritual, gera uma contemplação infantil e abobada da realidade. Quando o material se separa do espiritual, tudo vira mero materialismo.
Há uma dimensão prática e concreta da vida. A vida do trabalho organiza a vida espiritual. A vida espiritual dá sentido à vida do trabalho. A religião é o sistema que reúne grandes narrativas cósmicas de teorias ou ideias gerais a práticas cotidianas. As narrativas cósmicas dão sentido às práticas, e as práticas dão conteúdos fáticos. O que é isto? É o conteúdo de realidade. São os fatos concretos da vida. Ou seja, é o encontro do espírito e a carne. Portanto, pensemos em espiritualidade além de ser uma ciência do coração ou do intelecto: ela é uma prática da vida.
Christopher Marques é bacharel e mestre em Teologia, pós-graduado em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, e autor de “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.
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