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Síntese do dia 1

O vestibular como aprendizado

Quando o assunto é Enem, a polêmica logo se encaminha para o nível de cobrança das questões da prova. Pesa sobre o Enem, desde a sua primeira versão, a valorização de um raciocínio prático visto como um esvaziamento teórico. Não obstante as mudanças implementadas nas versões seguintes, esse entendimento ainda produz efeito na avaliação da prova.

Isso, por si só, é material para um amplo debate, mas quero chamar a atenção para um outro aspecto que não costuma ser evocado quando o tema é tratado. É sobre ele que vou basear a posição que defendo, a de não adoção do Enem como prova única de ingresso nas universidades federais.

No meu modo de ver, uma prova única tira das universidades federais uma importante ferramenta de aprimoramento didático-pedagógico dos respectivos corpos docentes, reconhecido hoje como uma necessidade do ensino em todos os níveis.

No mundo acadêmico, o uso de jargões cria modos de interpretação específicos de cada área. É a apropriação desses modos de interpretação, juntamente com o conhecimento propriamente, que determina a aprendizagem, a formação do profissional em cada área. Imersos nesse ambiente, os professores formadores acabam calculando equivocadamente a distância entre a lógica usual do aluno e a lógica científica do ambiente universitário (podemos dizer, entre as linguagens de um e outro). Quanto da evasão não é decorrente desse descompasso?

Os alunos que prestam exame vestibular vêm de uma trajetória fundada na generalidade (tem de saber tudo), que a escola tenta tornar possível por meio da fragmentação dos conhecimentos em disciplinas. Os professores que os receberão estão numa trajetória diferente, fundada na especialização. Em comum, eles têm apenas a fragmentação dos saberes.

A elaboração de provas é um importante momento de diálogo entre ambos, de cruzamento dessas trajetórias, da qual deveria resultar uma trajetória de convergência, que não se dá por simples adesão, mas por um processo de apropriação dos modos de dar sentido aos enunciados produzidos por cada área do saber. Se o professor não desenvolve mecanismos de aproximação, ao aluno resta a tentativa de tentar segui-lo, o que não raro resulta em repetir discursos sobre o conhecimento, mas não o domínio propriamente desse conhecimento.

Dispensado de participar dessa aproximação, os professores deixam de apropriar-se dos mecanismos para estabelecer essa interação, que deve ser constante ao longo de todo o curso, deixando em muitos casos de contemplá-la nas avaliações realizadas na própria disciplina que ministra aos alunos que ingressaram na universidade. Quanto da evasão ou da retenção não é decorrente do desconhecimento dessa outra dimensão das provas, relacionada aos aspectos dialógicos da interação professor-aluno?

Por isso, considero fundamental que os professores de cada instituição (o maior número possível) participem da elaboração dos respectivos vestibulares, para terem noção dessa dimensão e das implicações advindas dos modos de elaborar questões.

Quaisquer tipos de provas precisam mudar sistematicamente, sempre que passam a engendrar mecanismos de interpretação que fogem do raciocínio em torno do conhecimento que cobram. Com o trabalho das áreas de elaboração de provas de cada instituição com os professores elaboradores, chamando a atenção para a dimensão discursiva dos materiais de avaliação, articuladas, aí sim, em fóruns de discussão nacional, essas mudanças tão necessárias seriam mais prontamente encaminhadas.

O afastamento discursivo de sua especificidade ensina o professor a dialogar com outros públicos em espaços de imbricação de áreas, e não apenas no confinamento de sua especialidade, fazendo-o sair de uma relação unívoca e desenvolver ferramentas para dosar a densidade teórica dos conteúdos que serão cobrados nos exames de qualquer natureza, sejam os vestibulares de entrada na instituição, sejam as provas que não apenas meçam, mas contribuam para a aprendizagem do aluno no decorrer do curso.

Com o Enem geral, perder-se-á, portanto, um importante estágio de aperfeiçoamento pedagógico do corpo docente. É uma forma de os professores desenvolverem mais habilidade para propiciar a aprendizagem dos sujeitos que vão receber como alunos, que não vêm prontos, mas para serem formados nas lides da área.

Altair Pivovar é professor do Departamento de Teoria e Prática de Ensino, Setor de Educação da UFPR, com mestrado em Letras e doutorado em Educação.

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