Ouça este conteúdo
“Government's first duty is to protect the people, not to run their lives.” (Ronald Reagan)
A submissão à autoridade no comportamento humano foi objeto de uma série de experiências célebres, repetidas com 300 mil pessoas pelo psicólogo norte-americano Stanley Milgram. A “Experiência de Milgram”, reproduzida em inúmeros países, envolvia três pessoas: o pesquisador, um suposto aluno (na verdade, um colaborador do pesquisador) e um professor (o verdadeiro objeto da experiência). Sob o pretexto de determinar a influência das punições no aprendizado, o professor deveria mostrar ao suposto estudante extensas listas de palavras e, em seguida, testar sua memória, castigando-o com descargas elétricas a cada erro. As descargas, que variavam entre 15 e 450 volts, eram acionadas pelo professor contra o estudante (situado em uma peça vizinha), com a voltagem sendo aumentada a cada novo erro cometido.
Contrariamente ao que acreditava o professor, o estudante (colaborador) não recebia os choques, mas apenas simulava reações estritamente codificadas, que evoluíam de murmúrios (a 75 volts) a um grito de agonia (a 285 volts), depois do qual se calava completamente. Ao professor era assegurado que os choques, embora dolorosos, não deixariam sequelas. Além disso, ele era encorajado pelo pesquisador a zelar para que a experiência chegasse ao seu fim, mediante exortações que iam do “queira continuar, por favor” ao “você não tem escolha. Deve continuar”. Se o professor persistisse em suas objeções após a quarta exortação a experiência era encerrada.
O resultado do experimento foi espantoso: mais de 60% dos professores o levaram até o fim, mesmo convencidos de que estavam administrando correntes de 450 volts (potencialmente letais) nos alunos. Em alguns países essa taxa chegou a 85% e, nos casos em que o professor se limitou a ler a lista de palavras, com outra pessoa administrando as (supostas) descargas elétricas, mais de 92% dos testados concluíram integralmente a experiência, mostrando como uma organização cuja operação é setorizada pode se converter num mecanismo cego e temível. Nas palavras de Milgram: “Esta é talvez a lição fundamental de nosso estudo: o comum dos mortais, realizando simplesmente seu trabalho, sem qualquer hostilidade particular, pode se tornar o agente de um processo de destruição terrível”.
Quando a obediência cega a comandos desarrazoados se instala no seio do aparato estatal incumbido da manutenção da ordem, levando à prática de atos arbitrários sob a égide da autoridade, estamos diante daquilo que Jordan B. Peterson denominou “expressão de poder patológico”: a imposição da autoridade sem limites ou contrapesos, manifestando-se de forma tetricamente destrutiva. O cumprimento diligente de ordens abusivas consagra o triunfo daquelas virtudes definidas como “secundárias” pelo escritor Carl Amery (pseudônimo utilizado pelo alemão Christian Anton Mayer). Segundo ele, virtudes como asseio, diligência, pontualidade e confiabilidade na execução de uma tarefa são secundárias em relação às virtudes cristãs de primeira ordem (como humildade, caridade, ascetismo e fé) por não constituírem um fim em si mesmas. Justamente por isso, as virtudes secundárias devem estar subordinadas à execução de metas intrinsecamente valiosas, sob pena de se converterem em algo negativo. Nas palavras de Amery, “Eu posso aparecer pontualmente para o trabalho numa casa paroquial ou num porão da Gestapo; eu posso ser meticuloso ao escrever sobre ‘a liquidação final dos judeus’ ou num trabalho sobre bem-estar social; eu posso lavar minhas mãos após um dia honesto de trabalho num milharal ou depois de minhas atividades no crematório de um campo de concentração”.
À luz de tudo quanto se disse até agora, façamos uma breve análise sobre o que vem se passando no Brasil em razão do enfrentamento à famigerada Covid-19. Não me entenda mal o leitor: é certo que, diante de uma pandemia, todos concordamos em abrir mão de certas liberdades em nome do bem comum, buscando seguir as orientações das autoridades sanitárias (mesmo que por vezes desencontradas), na medida de nossas possibilidades. Mas algo anda mal quando uma mulher é algemada por não guardar a distância (regulamentar?) de um metro e meio em relação a outro cliente na fila de um banco, ou quando estados da Federação determinam o confisco de equipamentos de proteção e medicamentos ao arrepio das mais comezinhas regras de direito administrativo. Ou, ainda, quando autoridades locais interditam acessos a municípios e decretam “toque de recolher” à população sem qualquer base legal.
O que dizer, então, de decretos draconianos que, redigidos de forma confusa e ambígua, impõem restrições que superam aquelas constitucionalmente previstas até mesmo para o estado de sítio? Não lhe parecem medidas espantosamente arbitrárias a prisão de um idoso e a perseguição (de helicóptero) a um casal, em razão do “crime” de caminhar à beira-mar em praias quase desertas? Pode-se admitir como minimamente razoável a incursão de policiais no recesso de um lar a fim de “dispersar” o agrupamento de cinco pessoas da mesma família, reunidas para orar?
Indo um pouco além: é tolerável o fato de que o mesmo Estado que está a brandir ferozmente seu bordão contra a população ordeira – vedando-lhe acesso ao trabalho e interditando, inclusive judicialmente, serviços que lhe são essenciais – prodigalize benesses a criminosos, mediante concessão da quimérica “prisão domiciliar humanitária”? Dito de outro modo: o que há de sentir o cidadão que, confinado em casa e privado do acesso aos meios que lhe garantem a subsistência, vê o Estado devolver às ruas uma multidão de delinquentes sob a alegação (já desmentida pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul) de que a saúde dos apenados estaria em maior risco caso fossem mantidos na prisão?
Impedidos de trabalhar e tendo sua liberdade cerceada sob os mais diversos aspectos, aqueles que teimam em viver honestamente são ainda forçados a comungar da crença virginal no sentido de que, uma vez soltos, os delinquentes – muitos deles autores de crimes contra o patrimônio, a liberdade sexual e a vida – observarão rigorosamente a “quarentena”, deixando de lado, a bem da saúde pública, suas “atividades”, não sujeitas a impostos, recomendações, alvará de funcionamento ou regulação outra que não seja o Código Penal! Registre-se, aliás, que, para surpresa de absolutamente ninguém, muitos dos prisioneiros liberados já foram recapturados enquanto, por assim dizer, “violavam o voto de confiança” tão humanitariamente concedido!
Veja, caro leitor: não estou habilitado a discutir se o isolamento (vertical, horizontal ou de qualquer outra espécie) representa a melhor solução para o enfrentamento da pandemia, tampouco tenho condições de avaliar a extensão do impacto de tais medidas na economia de nosso país. Há especialistas de sobra pra esse mister. A angústia que aqui partilho com você diz respeito a um aspecto da realidade infinitamente mais prosaico e sobejamente conhecido, mas que, segundo constato, vem sendo perigosamente negligenciado: o respeito à autoridade, como bem observou Bertrand de Jouvenel, deriva essencialmente do hábito e a obediência automática desaparece tão logo se imponham aos cidadãos obrigações que vão além daquelas a que eles se acostumaram. Quando destituído de seu caráter beneficente e exercido em desacordo com aquilo que os homens acreditam ser bom e justo, o próprio poder perde sua legitimidade, dando origem a processos de convulsão social, como motins, rebeliões e revoluções.
Subestimar o potencial de reação coletiva contra a prática de abusos é receita segura para converter uma massa de cidadãos pacatos numa turba incontrolável e caótica, algo que muitos que se julgavam poderosos descobriram apenas tardia e dolorosamente. A ação voluntariosa de déspotas obtusos, a investir com apetite de hiena sobre as liberdades individuais dos cidadãos sob o pretexto de protegê-los, pode ser tão letal quanto a disseminação de uma doença. Se hoje o organismo social brasileiro padece sob os efeitos deletérios do “vírus da insensatez”, resta o consolo de que nesse caso, felizmente, a cura é conhecida: respeito à lei, à Constituição Federal e, sobretudo, ao povo, que, na imortal definição de Thomas Jefferson, “é o único depositário seguro do poder”.
Diego Pessi, promotor de Justiça do MPRS, pós-graduado em Criminologia e Investigação Criminal pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna de Portugal, é coautor de "Bandidolatria e Democídio, ensaios sobre garantismo penal e criminalidade no Brasil".