| Foto: /

A Lei da Obediência Devida, editada pelo governo Raúl Alfonsín em 1987, determinava a impunibilidade judicial de oficiais militares abaixo do grau de coronel que cometeram crimes contra a humanidade na “guerra suja”, entre 1976 e 1983. O perigoso conceito de “obediência devida” aos superiores hierárquicos serviu, na Argentina, para proteger assassinos e torturadores. No Brasil, o mesmo conceito é invocado hoje, pela Receita Federal, numa tentativa de intimidação contra Kleber Cabral, presidente da União Nacional de Auditores Fiscais (Unafisco). A finalidade é proteger a couraça de sigilo que recobre as transações financeiras dos “amigos do rei”.

CARREGANDO :)

Em entrevista à edição brasileira do “El País”, Cabral apontou os obstáculos à investigação de crimes de lavagem de dinheiro erguidos pela aplicação da Lei de Repatriação e pelo chamado Sistema Alerta. A retaliação partiu do secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, e da Comissão de Ética (atenção, novilíngua!) do órgão, nas formas de uma interpelação extrajudicial e uma notificação. No fundo, ambos acusam o presidente da Unafisco de infringir o dever de “lealdade” à Receita. O que se almeja é implantar uma lei do silêncio, a fim de ocultar as engrenagens de privilégios cristalizadas no Fisco.

A Lei da Repatriação propiciou a regularização fiscal de valores e bens mantidos no exterior ou repatriados, oferecendo anistia geral a uma coleção de crimes que se estendem até a lavagem de dinheiro, passando pelo contrabando e por golpes contra a Previdência. Provando que, para os fidalgos, o crime compensa, o “regime especial” criado por ela permitiu a lavagem de dinheiro sujo a custos semelhantes aos impostos cobrados normalmente de contribuintes honestos.

Publicidade

O Brasil lava mais branco. A operação repatriadora completou-se pela “nota técnica” da Receita de 11 de novembro de 2016, que determinou a troca dos CNPJs e CPFs dos aderentes ao “regime especial” pelo CNPJ da própria Receita. A manufatura burocrática desse sigilo duplicado, não previsto em lei, assegura que só a alta cúpula do Leão é capaz de seguir os rastros dos processos de repatriação.

Os auditores fiscais investigam normalmente se você e eu cumprimos nossas obrigações com o Leão. Mas a espessa cortina do sigilo excepcional preserva os fidalgos do olhar dos auditores

O Sistema Alerta nasceu da perversa inversão do sentido de tratados internacionais de combate a crimes financeiros. Seguindo esses tratados, o Brasil criou, em 2010, uma lista de “pessoas politicamente expostas” (PPE) composta por autoridades políticas e altos funcionários de Estado. O objetivo declarado da PPE é exercer maior vigilância sobre as transações financeiras desse grupo de contribuintes. Contudo, a Receita encontrou um meio de subverter o mecanismo, dividindo os brasileiros em cidadãos de primeira e segunda classe.

Auditores fiscais perscrutam regularmente os dados dos contribuintes, no curso de investigações tecnicamente motivadas. Mas o Sistema Alerta toca uma campainha no gabinete do secretário da Receita quando ocorre acesso a dados fiscais das PPE. Em tese, trata-se de evitar acessos imotivados. De fato, a finalidade é atemorizar os auditores, enviando-lhes a mensagem de que aquela particular investigação tem o potencial de causar-lhes represálias funcionais. No lugar da vigilância especial sobre as PPE, estabeleceu-se um monitoramento extraordinário sobre os auditores.

Ávido pela carne de pequenos roedores, o Leão monta guarda para os grandes mamíferos. A lista oficial de PPE abrange cerca de 6 mil pessoas. Há, porém, fortes indícios de que, incluindo familiares e antigas autoridades, a abóboda do “foro privilegiado fiscal” estende-se por quase 30 mil cidadãos de “sangue azul”. Nesse universo da nossa aristocracia política e administrativa, encontram-se inúmeros alvos de investigação em operações anticorrupção da PF e do MP. Procuradores federais registram que a caixa-preta da Receita ajudou a mascarar, durante anos, crimes financeiros finalmente desvendados pela Lava Jato e operações similares.

Publicidade

A caixa-preta deve permanecer lacrada, custe o que custar. A interpelação de Rachid, uma careta ameaçadora, completa-se pela notificação da Comissão de Ética, um gesto patentemente ilegal. Para exercer a presidência da Unafisco, Cabral afastou-se das funções de auditor e não recebe salários da Receita. Encontra-se, portanto, fora da jurisdição administrativa do órgão. Tudo indica, porém, que a chefia da Receita nada reconhece senão o dogma autoritário da “obediência devida”.

A cadeia hierárquica não termina em Rachid. Diante da grosseira tentativa de intimidação à Unafisco, a palavra passa a Henrique Meirelles. O ministro da Fazenda precisa decidir se o Brasil oficial é capaz de conviver pacificamente com as liberdades públicas — e desvencilhar-se da teia de privilégios fiscais concedidos aos fidalgos. A alternativa é prender-se ao arcaico mastro argentino da “obediência devida”, declarado ilegal e anulado em 2004.

Acusam o presidente da Unafisco de infringir o dever de ‘lealdade’ à Receita. O que se almeja é implantar uma lei do silêncio, a fim de ocultar engrenagens de privilégios no Fisco.

Demétrio Magnoli é sociólogo