Uma professora estadual de escola com público extremamente carente e problemático me contou uma ótima história. Ela foi orientada pela direção da escola, que por sua vez retransmitiu uma ordem do governo, de conversar com as crianças das primeiras séries sobre a importância de ler e escrever. A ideia era falar sobre o encantamento das histórias, a igualdade social, conquistas afetivas e oportunidades infinitas que teriam no mundo fraterno. Tatibitate.
A professora decidiu fazer a atividade do seu jeito. Foi rápida. Perguntou às crianças se elas tinham ideia do motivo pelo qual precisavam ler e escrever. Deixou alguns se manifestarem e devolveu: “É para que ninguém engane vocês”.
Ou encaramos essa resposta primordial, ou ficamos com as mistificações desonestas adotadas por farsantes que dirigem secretarias de ensino, empossados por governantes que não dão a mínima para a educação e dela conhecem tanto quanto a maioria de nós conhecemos partículas atômicas tipo Bóson de Higgs.
Aquela professora e muitas outras, são quem, a duras penas, mantêm sua honestidade intelectual e consideram seu papel com maior responsabilidade do que seus altos chefes. Dirigentes, aliás, que jamais encararam uma sala de aula nem lidaram com essa meninada que está começando no mundo. Os alarmantes índices de analfabetismo funcional são os fatos que derrubam qualquer demagogia em contrário.
Os alarmantes índices de analfabetismo funcional são os fatos que derrubam qualquer demagogia em contrário
O medo de encarar o papel da transmissão da cultura como uma das principais missões dos adultos se reflete na covardia de uma geração que acredita no autoengendramento, lavam as mãos, nivelam o desigual e deixam crianças decidirem aquilo que deveria ser decidido por adultos. Essa gente considera um ato de violência que crianças e jovens sejam obrigados a ler um livro que não tenham escolhido espontaneamente. Esses meninos, coitados, vão pagar o preço quando encararem o desafio da disputa diante de quem cursou escolas privadas de elite. Igualdade de oportunidade sem igualdade no ferramental é falácia para a gente delirar com um mundo melhor.
Há alguns anos, um professor e filósofo brasileiro comentou que, quando ele se inscreveu em um instituto público para o segundo grau, teve de fazer um exame de admissão. A redação tinha de ser escrita em francês, com base em um trecho de Durkheim... Em francês! Foi nos anos 60. As avós e bisavós lembram que o pau comia no “ginasial”. Tinha francês no currículo, sem moleza nem multimídia.
Eu me senti uma pulga quando li sobre essa história do Durkheim. E olha que, no ensino básico público, eu já havia lido Machado, Guimarães e Euclides. No segundo grau introduziam textos de filosofia, nada fáceis. Enfim: lemos porque nos obrigaram. Não arrancou pedaço de ninguém nem provocou traumas para o divã.
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Tudo aquilo que construímos, equilibrado na balança da civilização e barbárie, é obra de transmissão do conhecimento cujo objeto sagrado são os livros.
Do pergaminho ao e-book, a liberdade sem conhecimento não é liberdade: é ilusão produzida pela conveniência. Nem que seja para concluirmos que não há liberdade, somente poderemos descobrir isso através da vital precedência dos livros.
Não existe uma teoria da conspiração de elites maquiavélicas que desinvestem em educação para impor modelos de ilusão conformista e dominação. Não se trata disso; mas existe de fato um impasse provocado pelo esvaziamento das paixões políticas e pela falta de interesse pelo conhecimento e pela liberdade. Mario Vargas Llosa, em A civilização do espetáculo, joga a toalha e considera que a cultura foi para o saco. Para ele, já era. Nos dirigimos rumo a um futuro besta e estúpido.
Prefiro não pensar dessa forma. Redes sociais trouxeram para a escrita cotidiana uma multidão inédita de pessoas que escrevem algumas linhas por dia. Herdeiros do descalabro educacional, muitos atropelam a gramática e o raciocínio. Debatem com faca na mão. Talvez seja o preço da novidade. Mas é cedo; esse troço é recente.
A liberdade sem conhecimento não é liberdade: é ilusão produzida pela conveniência
Um dia, quem sabe breve, nos daremos conta dos desacertos da vida e iremos nos perguntar, como fez um francês lá longe, no meio de 1500, sobre o sentido da desigualdade, ou, como ensinou um espanhol, olharemos para dentro de nós mesmos e de nossos sonhos, ou perderemos o fôlego com o inglês das paixões e das tormentas. Só vamos encontrar isso nos livros. Tudo bem: filmes também; mas a imagem é escrava do texto, ainda que seja em um filme sem palavras como Powaqqatsi.
O pior inimigo de cada um de nós não é a tecnologia, embora estudos aparentemente sérios mostrem que os celulares estão alterando o processamento do cérebro, detonando nossa capacidade de concentração e nos transformando em seres mais limitados do que aqueles que nos precederam (e cuja formação foi feita por meio dos livros).
O pior inimigo é um sistema educacional que não valoriza os livros e não cumpre o papel de transmitir a cultura para as crianças. Transmitir sem medo, sabendo que os alunos não são adultos: precisam de nós para chegar lá um dia. Que tipo de adultos serão e que país construirão? Depende dos livros. É simples assim: “Para que ninguém os engane”.
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