Bets, apostas esportivas, apostas online, jogo do tigrinho| Foto: Fernando Jasper/Gazeta do Povo
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Na última semana, entre corridas pelo trânsito de São Paulo, dois motoristas de aplicativo me mostraram, sem querer, a mesma cena: telas de celular abertas em plataformas de apostas, as populares bets. A imagem, aparentemente corriqueira, é um retrato do Brasil em 2025. Se nossos pais e avós mediam o pulso da sociedade nos botecos com garçons e engraxates, hoje são os motoristas de app – 2,5 milhões de trabalhadores (IBGE, 2024) – quem revelam as fissuras de um sistema em decadência.

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A obsessão por bets e apostas online não é mero vício, mas um sintoma de um país onde 58% dos apostadores têm dívidas crônicas (IPEA, 2024), e a sorte parece o único caminho para escapar da precariedade. O crescimento das casas de apostas (16,9% ao ano, segundo a FGV) é sustentado por uma máquina de sedução: patrocínios em todos os 20 clubes da Série A do Brasileirão, influenciadores como Gusttavo Lima prometendo "fortunas com um clique", e presença constante em eventos esportivos e de entretenimento.

Assim como o engraxate de Rockefeller simbolizou a euforia pré-1929, os motoristas de hoje refletem um sistema que monetiza o desespero. A diferença? O cassino agora cabe no bolso

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Um estudo da Faculdade Getúlio Vargas (2023) expõe o ciclo perverso: Aproximadamente 43% dos beneficiários do Bolsa Família apostam parte do auxílio, enquanto o STF já decidiu pela proibição do uso do benefício em bets, o governo alega que não tem como impedir já que as contas do Bolsa Família também recebem dinheiro de outras fontes, e o governo não pode controlar cada gasto nem repassar dados a bets.

Assim como o engraxate de Rockefeller simbolizou a euforia pré-1929, os motoristas de hoje refletem um sistema que monetiza o desespero. A diferença? O cassino agora cabe no bolso. A categoria é um mosaico: profissionais desempregados, migrantes em busca de oportunidades, jovens que abandonaram ou adiaram faculdades. Essa diversidade, porém, não se traduz em força coletiva – como mostra a queda dos representantes da categoria nas principais cidades do país nas eleições 2024.

Talvez, quem mais tenha entendido os anseios da categoria tenha sido Pablo Marçal. Este também um sintoma das circunstâncias. Sua retórica – "O Estado é seu inimigo, torne-se um empreendedor de si mesmo" – ecoa entre motoristas que veem na regulamentação trabalhista uma ameaça à "liberdade" de dirigir 14 horas por dia. A contradição é óbvia: rejeitam sindicatos, mas abraçam discursos que os mantêm reféns da precariedade. 

Enquanto o PL 3.563/2024 – que restringe propagandas de apostas – enfrenta resistência no Senado desde março de 2024, países como Alemanha e Reino Unido avançam: o primeiro limita apostas a 1% da renda mensal; o segundo proíbe anúncios após 21h. Quando motoristas de aplicativo e outros trabalhadores informais apostam seu sustento em mercados obscuros como nas bets isso não é apenas uma escolha individual. É um sintoma de um sistema econômico e político falho, incapaz de oferecer oportunidades reais para uma classe trabalhadora cada vez mais fragilizada.

A falta de regulamentação das apostas online e bets, somada à precarização do trabalho digital, cria um ciclo de vulnerabilidade social e econômica. Em um cenário onde a única aposta que resta é a sorte, é preciso que o Estado ofereça políticas públicas integradas: educação financeira nas escolas públicas e a regulamentação urgente das bets e apostas. Sem isso, as bets seguirrão sendo o único "plano de carreira" disponível para inúmeros trabalhadores.

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Acacio Miranda da Silva Filho, pós-doutorado em Direito Público pela Fundacion Las Palmas (Espanha), pós-doutorando em Administração Pública e Governo, é doutor em Direito Constitucional, mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Espanha), especialista em Teoria do Delito na Universidade de Salamanca (Espanha), em Direito Penal Econômico na Universidade de Coimbra e em Direito Penal Econômico na Universidade Castilla – La Mancha (Espanha).

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]