A recomendação do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, utilizada como fundamento para pleitear, perante o Tribunal Superior Eleitoral brasileiro, a candidatura do ex-Presidente Lula, não tem nenhum caráter vinculante em relação à jurisdição judicial brasileira. Trata-se, o Comitê, de órgão administrativo criado no âmbito do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos firmado pelo Brasil, possuindo atribuições meramente consultivas. O pacto, desde outro ângulo, porque norma jurídica devidamente recepcionada na ordem jurídica interna, poderá ser interpretado e aplicado por todos os tribunais brasileiros, ao lado de tantos outros atos normativos, de idêntica hierarquia ou não.
É preciso, portanto, divisar dois objetos distintos aqui: um é o pacto; outro, o comitê (criado pelo pacto).
O comitê atua administrativamente, e suas recomendações podem, ou não, ser cumpridas na ordem jurídica interna. O cumprimento tem caráter preponderantemente político, perante a comunidade internacional, dado que a jurisdição internacional não é adjetivada de coercitividade (logo, não se impõe internamente). Nada obstante, não é demais observar ser evidente que cabe ao país, de fato, esforçar-se por fazer cumprir as disposições dos acordos com os quais se compromete. Mas é igualmente válido afirmar ser necessário analisar, cuidadosamente, em que medida teria incorrido, efetivamente, em um seu descumprimento.
O comitê atua administrativamente, e suas recomendações podem, ou não, ser cumpridas na ordem jurídica interna
Por outro lado, tratados, acordos e pactos internacionais em matéria de direitos humanos firmados pelo Brasil, quando devidamente recepcionados, são atos normativos que, válidos, reunem material jus-normativo suscetível de interpretação e aplicação. Aqui, podem surgir dúvidas quanto à posição hierárquica desses atos normativos em relação à ordem jurídica interna. A solução da dúvida é fundamental porque elide discussões em torno do que deve prevalecer: se a Constituição, os atos normativos internacionais ou a legislação infraconstitucional com eles confrontada.
No que diz respeito à hierarquia normativa entre tratados, acordos e pactos internacionais em relação à Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal, ao se defrontar com a questão (clássica) já decidiu: é necessário que tratados e acordos internacionais em matéria de direitos humanos passem pelo rito previsto no art. 5.º, §3.º, da Constituição de 1988, para que possam obter o mesmo status das demais normas constitucionais. Vale dizer, para que possam assumir hierarquia normativa idêntica à da Constituição, é preciso que esses acordos sejam incorporados, à ordem jurídica interna, pelo mesmo rito procedimental válido para as emendas constitucionais: votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional, e aprovação pelo voto de no mínimo 3/5 dos seus respectivos membros. Esse rito especial de incorporação foi uma cautela criada pelo constituinte de 2004 justamente com o objetivo de evitar a invasão, descontrolada, de atos normativos que pudessem trazer distorções em relação à ordem jurídica interna. Fora disso, todos os demais atos internacionais são recepcionados na ordem interna como normas infraconstitucionais (ainda que “supralegais”, no entender de alguns, quando versarem sobre direitos humanos). E mais: em se tratando de revisitar (rever) o próprio conteúdo da Constituição, à luz de acordos internacionais em matéria de direitos humanos, naqueles casos (raros) em que o indivíduo se ache mais protegido por normas internacionais do que pela própria Constituição brasileira, opera-se aqui o que a doutrina chama de mutação constitucional, que nada mais é do que a mudança de sentido da Constituição sem que se lhe altere o texto. Essa mudança ou mutação, contudo, ocorre somente em nível interpretativo, por força das normas internacionais de jus cogens (ou, de direito natural), sem que a Constituição perca validade ou força normativa. Afinal, como nos esclarece a melhor doutrina, não há “normas constitucionais inconstitucionais.”
Opinião da Gazeta: O fim da farsa (editorial de 1.º de setembro de 2018)
Leia também: Lula, Haddad e Manuela: uma estratégia (artigo de Francis Augusto Goes Ricken, publicado em 26 de agosto de 2018)
Um exemplo dessa “mutação constitucional” foi a extinção, no Brasil, da prisão civil do depositário infiel: a Constituição ainda prevê, expressamente, essa hipótese de encarceramento para o depositário infiel (art. 5.º, LXVII), ao lado do devedor de alimentos. Todavia, o Pacto de São José da Costa Rica, firmado pelo país, autoriza a prisão civil somente ao devedor de alimentos. Em exercício interpretativo que resultou em uma verdadeira mutação constitucional, o Supremo Tribunal Federal, na prática, fez valer o pacto, frente à Constituição (HC n.º 87.585-8/TO).
Tanto não faz sentido que pactos, acordos, protocolos e demais atos normativos firmados em nível internacional se sobreponham à Constituição brasileira que, é fato, tais atos somente são recepcionados no ordenamento jurídico interno porque, justamente, a Carta Federal assim autoriza. Em outras palavras: ambas as competências do presidente da República para firmar, e do Congresso Nacional para aprovar referidos atos, são atribuídas pela Constituição (arts. 49, I e 84, VIII). O rito de incorporação desses atos decorre, igualmente, de procedimentos expressamente nela previstos. Ou seja, tudo encontra fundamento de validade ali, na Constituição. Logo, como poderiam tais atos normativos a ela se sobrepor?
Entender que uma simples recomendação de um comitê ou de qualquer outro órgão administrativo internacional possa se sobrepor à ordem jurídica interna não se amolda ao sistema jurídico brasileiro contemporâneo. Afinal, como dito, não se impõe à jurisdição judicial interna. E, frise-se, nunca é demais lembrar que o Supremo Tribunal Federal tem, por competência, o dever de exercer a guarda da Constituição (art. 102, caput, da CF88).
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