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Em 2002 foi lançado o filme de ficção cientifica Minority Report, estrelado por Tom Cruise e dirigido por Steven Spielberg. O roteiro traz a história de um departamento de polícia especializado em “pré-crimes”, que apreende assassinos com base no conhecimento prévio fornecido por três videntes chamados de precogs, antes mesmo de o crime acontecer! Assim é a cobrança do ICMS na chamada “substituição tributária para frente”.

Esta comparação foi feita pela doutrinadora Misabel Derzi, e é a mais pura realidade. Existe uma gama elevada de mercadorias que se sujeita a este tipo de cobrança, como alimentos, combustíveis, medicamentos e automóveis. Neste sistema, o governo do estado, fazendo as vezes dos precogs, diz quanto será o valor de venda da mercadoria ao consumidor final e, no momento em que o produto sai da indústria, do importador e/ou do distribuidor, faz a cobrança prévia do valor que visualizou como devido.

Ocorre que, no mais das vezes, o valor atribuído à mercadoria, por meio da chamada “margem de valor agregado” ou “pauta fiscal”, é superior àquele efetivamente praticado e, até então, nada se podia fazer em relação a esta cobrança a maior do que o realmente devido.

Esta questão já havia sido levada aos tribunais, mas – curiosamente, no mesmo ano de lançamento do filme – o Supremo Tribunal Federal chegou a decidir que os valores pagos a maior não podiam ser ressarcidos ao contribuinte, porque a presunção do fato gerador deveria ser definitiva, ou seja, se o “pré-crime” foi visualizado, haveria de se prender o culpado, sem lhe dar a chance de desistir do ato antes de sua prática.

Os julgados antigos do STF não podem petrificar a interpretação do texto constitucional

Mas, assim como o personagem John Anderton, interpretado por Cruise, os contribuintes não desistiram de combater o sistema e conseguiram levar a questão novamente ao Judiciário com outros argumentos. E, como o direito é uma ciência dinâmica, que deve estar em constante ajuste às evoluções da sociedade, desta vez obtiveram decisão favorável, assegurando-lhes o direito de ressarcimento daquilo que foi pago a maior, também na hipótese de o fato gerador ocorrer em valores menores que os presumidos e usados como base para o cálculo.

O ministro Ricardo Lewandowski, relator do processo, fez relevantes ponderações no voto condutor da decisão. Uma delas é que os julgados antigos do STF não podem petrificar a interpretação do texto constitucional. Outra, que o fato de a Constituição assegurar o direito de o Estado exigir antecipadamente o imposto não lhe dá o direito de cobrar valores sobre fatos que jamais existiram.

O julgamento se deu na sistemática da Repercussão Geral e teve seus efeitos modulados, o que significa dizer que a aplicação do direito reconhecido pela corte suprema não vai se dar de forma automática a todos os contribuintes. Primeiro, é preciso esclarecer que o instituto da Repercussão Geral produz o chamado “efeito multiplicador”, ou seja, o STF decide uma única vez uma determinada questão constitucional e o resultado desta deverá ser adotado por todos os juízes e tribunais do país em processos que têm idêntica discussão.

Porém, diferentemente das decisões proferidas em Ação Direita de Inconstitucionalidade, ou da edição das Súmulas Vinculantes, a aplicação da decisão não é automática para todos os cidadãos, nem vincula a administração pública. Em outras palavras, o Estado não está automaticamente obrigado a devolver os valores pagos a maior para todo e qualquer contribuinte. Salvo se o próprio STF decidir transformar este entendimento em Súmula Vinculante, ou se o Estado resolver regulamentar a questão, apenas aqueles que entrarem com medidas judiciais terão este direito assegurado e, ainda, por força da chamada modulação dos efeitos, não poderão buscar valores do passado, mas sim passarão a se creditar das diferenças encontradas entre o valor presumido para o imposto e o realmente praticado mês a mês.

Outra questão que vem à tona é se o Estado poderá exigir eventuais diferenças recolhidas a menor, quando o valor presumido for inferior àquele efetivamente praticado. A resposta é negativa; primeiro, porque não existe previsão constitucional para isso – seria o mesmo que exigir tributos sem lei que o estabeleça, o que não é aceito no ordenamento jurídico nacional. Segundo, porque não teria lógica, uma vez que é ele mesmo quem define as margens de valor agregado e/ou pauta fiscal; se atribuiu a menor, o fez deliberadamente.

De tudo isso, resta concluir que, diferentemente do filme, o programa de pré-crimes não foi cancelado e abandonado, mas ajustado à realidade dos contribuintes, pois, se o Estado não quer sentir o impacto negativo do creditamento das diferenças entre o valor presumido para o ICMS e o realmente praticado, deverá ficar mais atento ao mercado e estabelecer presunções de valores mais coerentes com o cenário econômico.

Rozi Monteiro Lourenço, contabilista e advogada, é especialista em Legislação e Planejamento Tributário e diretora do Grupo SMBC.
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