A morte do leão Cecil, atraído por um caçador para fora da reserva em que era mantido, ocasionou comoção internacional e coloca no centro dos debates o tema da relação dos seres humanos com os demais animais habitantes da Terra.
Após a Segunda Guerra Mundial, houve prevalência da postura de que os animais são objetos a serviço do homem, inserindo-os, sem maiores particularidades, na condição de propriedade. Essa postura encontrou forte impulso por influência dos governos norte-americanos, em especial os republicanos, a partir de sua permanente recusa a aderir aos tratados de proteção ambiental, afirmando a lógica que conduz os interesses econômicos ao nível extremo da admissão da total exploração de todos os recursos da Terra para a obtenção de lucros.
Nos últimos anos, em especial na América Andina e na Europa, ocorreu rompimento com esse sistema, o que se percebe no recente Código Civil francês, aprovado neste ano, que muda a classificação tradicional, não inserindo os animais na condição de propriedade, mas deles tratando como seres vivos dotados de sensibilidade e titularidade de direitos, inclusive remetendo à legislação penal o tratamento da ofensa à vida deles, como crime contra a vida por se tratarem de seres vivos capazes de sentir prazer, angústia, pena e sofrimento. Equador e Bolívia já haviam proclamando, respectivamente nas Constituições de 2008 e 2009, a condição de seres não humanos dotados de vida e capazes de sentir dor dos animais.
Não se justifica que os animais não sejam titulares de direitos próprios
No Brasil, apesar dos avanços havidos na Constituição de 1988, houve paralisia legislativa e interpretativa pelos tribunais, e os animais ainda são irrestritamente submetidos à condição de propriedades passíveis de plena exploração. Ocorre que a Constituição brasileira, ao reconhecer a obrigação da conservação das espécies, proibindo a submissão de animais à crueldade, impede que os seres não humanos dotados de vida e capazes de sentir sejam objetivizados pela legislação infraconstitucional; não se justifica que não sejam eles titulares de direitos próprios, como o de não terem sua vida retirada ou de não serem submetidos à violência ou ao abandono. Dessa forma, é proibida qualquer ação de agressão a animais que não seja escorada em uma necessidade de defesa ou alimentar e, nesta hipótese, deve ser impedido o sofrimento desnecessário, com rigoroso controle sobre abatedouros e locais que comercializem produtos de origem animal.
A clara contrariedade da opinião pública com a morte de Cecil mostra um sentimento generalizado de que a responsabilidade humana com os demais seres viventes da Terra não permite a ilimitada exploração deles, o que encontra forte respaldo na Constituição brasileira e hoje já representa tendência da legislação de diferentes países, sendo essencial que os tribunais brasileiros proclamem a condição deles de seres vivos capazes de sentir, com todas as consequências advindas, assim como o poder público está obrigado a desenvolver políticas afirmativas desta condição, com controle rigoroso em clínicas veterinárias, pet shops, indústrias farmacêuticas, abatedouros, locais de comercialização de produtos de origem animal, entre outros, mantendo estrutura para socorro emergencial de animais submetidos a abandono ou a situação de risco. Afinal, como ensina Peter Singer, “todos os argumentos para provar a superioridade do homem não podem quebrar essa dura realidade: no sofrimento, os animais são nossos iguais”.