| Foto: Francisco Leong/AFP

Figura ímpar do século 20, o recentemente falecido Mario Soares precipitou evocações de grande oportunidade, motivadas pela dignidade de sua vida pública, em momento de crítico descrédito da política.

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Longe do sectarismo binário da Guerra Fria, Soares esteve na liça da história portuguesa, como um dos arautos da modernização do país e da construção de sua modelar democracia plural, laica e republicana. Rebelde às verdades autoritárias à esquerda e à direita, embora fundador do Partido Socialista, não hesitou em pôr o socialismo na gaveta, para usar expressão sua, na modernização de Portugal e na adesão às comunidades europeias. Só quem conheceu a vetusta Lusitânia anterior a isso é que pode auferir a dimensão exata do milagre.

Quando a atual crise europeia é atribuída à carência de líderes, é inevitável lançarmos os olhos ao ilustre português ora pranteado

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No contexto da Revolução dos Cravos, já nos dramáticos anos de 1970, outro prodígio: sempre ardoroso democrata, com a indenidade de ter sido o inimigo-mor do salazarismo, enfrentou a ultraesquerda fardada e bolchevista. Eram tempos de acirramentos e de conflitos sociais, mas a democracia de Soares impôs-se corajosamente, com o brado que ganhou as ruas e as eleições, dito com a deliciosa prosódia e alma lusa: “Portugal é do povo, não de Moscovo!”

Burguês reacionário na ótica de uma ala extrema e intolerante, e revolucionário na percepção da outra, foi apenas estadista de fato, com juízo consolidado na cultura jurídica portuguesa, ciente da impossibilidade de governar e pacificar apenas com a rigidez dos dogmas. Que, assim como a vida que é múltipla, fluida e variegada, também a política não pode reduzir-se a verdades a priori. Tudo é constante e também nela ninguém se banhará nas mesmas águas de um rio.

Primeiro-ministro em momentos cruciais para a democratização do país, foi poderoso chefe de governo de 1976 a 1978 e de 1983 a 1985; mais tarde, também foi chefe de Estado, como presidente da República por dois mandatos, mas nunca se portou como rainha da Inglaterra, sempre opiniático e falastrão. Como dizia acerca de sua carreira, com a nonchalance dos seres superiores, “quase toda a gente já votou em mim, quase toda a gente já votou contra mim”.

Amigo do Brasil e dos brasileiros, confidente do doutor Ulysses e de dona Mora, entendeu desde logo que a distância fundada em preconceitos que nos separavam mais que o Atlântico não tinha razão de ser. Emulador da aproximação de países de língua portuguesa, mas com estratégica atenção ao Brasil, com a autoridade moral de descolonizador, foi um dos inventores da lusitanidade como ativo de política externa. Depois, ao prestigiar e promover o Estatuto da Igualdade Luso-brasileira, contribuiu para importante avanço, além da mera retórica da diplomacia do afeto.

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Quando a atual crise europeia é atribuída à carência de líderes, é inevitável lançarmos os olhos ao ilustre português ora pranteado. Timoneiro seguro e intimorato, que sabia navegar todas as rotas, Mario Soares deixa legado de independência intelectual e de liberdade exemplar, sempre na convicção de que a política, como espaço de dignidade, é o único cenário possível para a democracia. Navegar é preciso.

Jorge Fontoura é advogado e professor.