Figura ímpar do século 20, o recentemente falecido Mario Soares precipitou evocações de grande oportunidade, motivadas pela dignidade de sua vida pública, em momento de crítico descrédito da política.
Longe do sectarismo binário da Guerra Fria, Soares esteve na liça da história portuguesa, como um dos arautos da modernização do país e da construção de sua modelar democracia plural, laica e republicana. Rebelde às verdades autoritárias à esquerda e à direita, embora fundador do Partido Socialista, não hesitou em pôr o socialismo na gaveta, para usar expressão sua, na modernização de Portugal e na adesão às comunidades europeias. Só quem conheceu a vetusta Lusitânia anterior a isso é que pode auferir a dimensão exata do milagre.
Quando a atual crise europeia é atribuída à carência de líderes, é inevitável lançarmos os olhos ao ilustre português ora pranteado
No contexto da Revolução dos Cravos, já nos dramáticos anos de 1970, outro prodígio: sempre ardoroso democrata, com a indenidade de ter sido o inimigo-mor do salazarismo, enfrentou a ultraesquerda fardada e bolchevista. Eram tempos de acirramentos e de conflitos sociais, mas a democracia de Soares impôs-se corajosamente, com o brado que ganhou as ruas e as eleições, dito com a deliciosa prosódia e alma lusa: “Portugal é do povo, não de Moscovo!”
Burguês reacionário na ótica de uma ala extrema e intolerante, e revolucionário na percepção da outra, foi apenas estadista de fato, com juízo consolidado na cultura jurídica portuguesa, ciente da impossibilidade de governar e pacificar apenas com a rigidez dos dogmas. Que, assim como a vida que é múltipla, fluida e variegada, também a política não pode reduzir-se a verdades a priori. Tudo é constante e também nela ninguém se banhará nas mesmas águas de um rio.
Primeiro-ministro em momentos cruciais para a democratização do país, foi poderoso chefe de governo de 1976 a 1978 e de 1983 a 1985; mais tarde, também foi chefe de Estado, como presidente da República por dois mandatos, mas nunca se portou como rainha da Inglaterra, sempre opiniático e falastrão. Como dizia acerca de sua carreira, com a nonchalance dos seres superiores, “quase toda a gente já votou em mim, quase toda a gente já votou contra mim”.
Amigo do Brasil e dos brasileiros, confidente do doutor Ulysses e de dona Mora, entendeu desde logo que a distância fundada em preconceitos que nos separavam mais que o Atlântico não tinha razão de ser. Emulador da aproximação de países de língua portuguesa, mas com estratégica atenção ao Brasil, com a autoridade moral de descolonizador, foi um dos inventores da lusitanidade como ativo de política externa. Depois, ao prestigiar e promover o Estatuto da Igualdade Luso-brasileira, contribuiu para importante avanço, além da mera retórica da diplomacia do afeto.
Quando a atual crise europeia é atribuída à carência de líderes, é inevitável lançarmos os olhos ao ilustre português ora pranteado. Timoneiro seguro e intimorato, que sabia navegar todas as rotas, Mario Soares deixa legado de independência intelectual e de liberdade exemplar, sempre na convicção de que a política, como espaço de dignidade, é o único cenário possível para a democracia. Navegar é preciso.
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