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Onde erramos?

Teste de coronavírus em drive thru. (Foto: Ari Dias/AEN)

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O Sars-Cov-2, causador da Covid-19, é definitivamente a mais grave crise de saúde global do último século. Sua gravidade se dá obviamente por conta dos óbitos, mas não podemos negligenciar outros impactos indiretos, como o econômico, social, mental e político. O fato de quase todos sentirem algum dos efeitos gerados pela pandemia fez com que todos passassem a ter alguma opinião sobre o assunto, o que é totalmente natural.

As redes sociais são instrumentos valiosos de democratização da informação, sejam as boas, as ruins e as imprecisas, que compõem a maior parte. Os gestores públicos, por sua vez, ficam pressionados a mitigar ao máximo todos os efeitos gerados em resposta à grande demanda gerada pela sociedade. Mas aparentemente essa resposta foi inadequada em todos os aspectos. A crise na saúde é óbvia. No aspecto econômico, vamos mal. Socialmente e mentalmente não podemos dizer que estamos em situação favorável, e na política nem se fala.

Mas onde foi o erro? O que poderíamos ter feito diferente? Para responder isso, precisamos fazer um raio-x nos aspectos biológicos e sociais que movem a transmissibilidade viral. Há quatro variáveis principais que influenciam a transmissão.

A primeira é a duração da transmissibilidade. Um indivíduo que está com o vírus o transmite por um período de 7 a 10 dias, iniciando em média dois dias antes do aparecimento dos sintomas (quando ocorrem sintomas). Não há uma intervenção comprovadamente eficaz para reduzir o tempo de transmissibilidade. É possível que, ao pensar que tratamentos milagrosos atuem nessa variável, aumenta-se a chance de transmitir o vírus por negligenciar as demais variáveis. Mas esse não foi o principal erro.

A segunda variável é a proporção de pessoas com imunidade ao vírus. Essa é uma variável potente e, ao se atingir a conhecida “imunidade de rebanho”, pode-se por si só frear a circulação viral. O limiar de imunes para chegarmos lá gira entre 70% e 80%. Há duas formas de se atuar aí. Ou por meio da infecção ativa pelo vírus, o que simplesmente causaria milhares de óbitos no Brasil, ou pelas vacinas. Vamos fazer as contas. Considerando uma letalidade de 0,5% e que 70% dos 212 milhões de brasileiros contraiam a doença, seriam 742 mil óbitos. Lembro que até o momento ocorreram 284 mil; faltariam, então, 458 mil. Creio que todos concordamos que não seria um gesto humanitário induzir a imunidade desta forma.

Mas, mesmo considerando as vacinas, não é tão simples assim. De tempos em tempos, por causa de mudanças na estrutura viral e surgimento de novas variantes, a queda natural da imunidade que ocorre ao longo do tempo e o nascimento de novos indivíduos fazem com que progressivamente ocorra redução na proporção de imunes; é isso que faz com que algumas doenças voltem a circular depois de um período de calmaria. É lógico que houve falha ao ataque dessa variável ao não termos sido mais agressivos na compra de vacinas. Até o momento, as vacinas não atuaram de forma significativa na redução da transmissibilidade.

O terceiro fator é a probabilidade de transmissão do vírus durante a interação entre um transmissor e um suscetível. Aí entra o uso de máscaras, distanciamento acima de 1,5 metro, evitar ambientes fechados e pouco ventilados. Aqui entra o poder de convencimento. As lideranças, por meio das palavras e, principalmente, do exemplo, exercem grande influência sobre a população. A falta de uma estratégia e discurso homogêneo gerou alto grau de incerteza e insegurança, impactando negativamente na adesão a essas medidas. Além disso, é natural que haja uma ciclicidade de adesão. Em períodos de colapso do sistema de saúde, há maior adesão. Nos tempos de calmaria, relaxa-se.

Por último, a variável da oportunidade de transmissão, ou seja, o número de interações de um transmissor com um suscetível. Por exemplo, as medidas que visam a redução da mobilidade, fechamento de setores (comércio, escolas) e a medida mais extrema, o lockdown, atuam aqui. Buscam reduzir as interações de transmissores com suscetíveis. É aqui que erramos mais. Veja só: se a intenção é reduzir a interação de transmissores com suscetíveis, considerando que os transmissores correspondem na maior parte do tempo a menos de 2% da população (pode chegar a 5% nos picos), por que não restringir a circulação somente dos transmissores? Testagem de rastreamento em massa seria a forma mais eficaz de identificá-los. É o que a China, Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul, Vietnã, Austrália e Nova Zelândia fizeram.

No Brasil, não incorporamos o conceito de teste como forma de rastreamento populacional. Usamos os testes laboratoriais somente como instrumento de diagnóstico, o que é importante, mas que tem efeito nulo na transmissão viral. Durante uma infecção, cerca de 20% dos indivíduos simplesmente não farão sintomas e uma proporção significativa das transmissões ocorre em fase pré-sintomática. Ou seja, se deixarmos para testar somente quem tem sintomas, as transmissões continuarão a ocorrer.

A testagem de rastreamento não precisa ser com um teste perfeito. Aliás, não há um teste perfeito. O PCR tem sensibilidade de 70% a 80% e, além de demorar dias para o resultado, boa parte dos testes reagentes ocorre após o período de transmissibilidade. Testes de antígeno são sensíveis para detectar transmissores e ficam prontos em 15 minutos. Perdem sensibilidade para os não transmissores, o que não interessa para fins de estratégia de redução da transmissibilidade. Infelizmente ainda há uma falha de entendimento do uso de testes laboratoriais como instrumento em saúde pública, mas que está mudando em alguns locais. Joe Biden autorizou o investimento de US$ 50 bilhões em aumento na capacidade de testes dos EUA, boa parte disso para os testes de antígeno. Na Europa, esses testes estão sendo usados por escolas e, na Alemanha, são disponibilizados gratuitamente para a população.

Otimizar a capacidade de identificar os transmissores, por meio de aumento na quantidade, frequência, velocidade e redução do custo dos testes, é uma arma poderosa para viabilizar a manutenção de atividades econômicas e educacionais. Em última análise, poderíamos estar usufruindo do efeito desejado pelas vacinas, enquanto ela não chega a nós.

Bernardo Montesanti Machado de Almeida é infectologista do Serviço de Epidemiologia Hospitalar do Complexo Hospital de Clínicas-UFPR e diretor médico do Laboratório Hilab.

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