Com o encerramento do primeiro turno de votação da reforma da Previdência (PEC 06/19) no Congresso, um outro tema acabou chamando a atenção de parte da imprensa: a volta de Ciro Gomes. Sim: o candidato, que acreditou ser a terceira via das eleições presidenciais do ano passado, ressurgiu das cinzas para desferir ataques a uma colega de partido que ousou contrariar as determinações da legenda. A deputada em questão é Tabata Amaral, uma das principais lideranças jovens que apareceram nos últimos anos defendendo uma renovação no sistema político brasileiro.
Eleita pelo PDT com mais de 264 mil votos em 2018, Tabata, 25 anos, é cientista política e astrofísica formada pela Universidade de Harvard e ganhou notoriedade por seu ativismo em defesa de projetos que posicionem a educação como prioridade de governo e a conclamação do jovem como protagonista desse movimento. Ao lado de outros 378 parlamentares, a deputada foi um dos votos favoráveis ao texto-base apresentado pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP).
Ciro Gomes, por sua vez, é o típico caso de esquizofrenia política que nem mesmo Victor Frankenstein seria capaz de entender. Nasceu dentro do PDS, antiga Arena, após militar em movimentos estudantis; passou pelo PMDB e pelo PSDB, no qual chegou a ocupar a posição de ministro da Fazenda nos últimos meses do governo Itamar Franco. Vangloria-se de ter feito, sob sua gestão, o país alcançar seu maior superávit histórico, porém, assinando medidas que já estavam previstas na elaboração do Plano Real.
Tabata Amaral se tornou persona non grata, enquanto Ciro Gomes continua sendo o que sempre foi
Na década de 90, Ciro Gomes tinha tanta certeza de sua vocação econômica que chegou a escrever um livro: O próximo passo. Uma alternativa prática ao neoliberalismo. Mas sua maior vocação, na verdade, sempre foi estar com um pé em cada barco. Percebendo o desgaste do modelo tucano e a iminência de um governo de esquerda, não demorou para trocar de lado mais uma vez, assumindo uma nova persona, um perfil mais socialista. Não adiantou: FHC foi reeleito em 1998. Ciro Gomes disputou novamente em 2002, mas não perdeu totalmente. Como prêmio de consolação, assumiu o Ministério da Integração Nacional nos primeiros anos de poder do PT, liderado à época por Lula, hoje condenado por corrupção, cumprindo pena em uma sala de Estado-Maior em Curitiba.
Quanto a Tabata, a deputada, que cumpre seu primeiro mandato, se tornou personagem notório na imprensa em seus primeiros meses de atuação ao confrontar o ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez. Em um discurso de seis minutos durante uma sabatina na Câmara, a congressista chegou a aconselhar Vélez, que enfrentava um grande desgaste, a deixar o cargo. A situação já era insustentável, mas o ministro agora tinha uma personagem antagonista. Mulher, jovem e de origem humilde. Tabata Amaral tornara-se a personificação de empoderamento pregada à exaustão em veículos de pseudojornalismo e ortônima militância, como vários sites de esquerda.
A deputada, apesar de integrar um partido baseado à esquerda do espectro político, sofre críticas da militância genuinamente esquerdista por enxergar na cultura meritocrática uma alternativa de desenvolvimento do indivíduo. Tabata é o resultado disso. Enquanto estudante da rede pública de ensino, participou de inúmeras olimpíadas de Matemática. E, por mais que ela tenha tido apoio de entidades como a Fundação Lemann e outras ligadas a empresários de diversos setores, é má fé (e não apenas ignorância) não reconhecer o mérito de alguém que sai da periferia de São Paulo para se graduar em Harvard.
No entanto, quando se vai contra as determinações políticas de Ciro Gomes, essa percepção muda. Tabata Amaral agora é persona non grata na cobertura de boa parte da imprensa. Enquanto isso, Ciro Gomes continua sendo o que sempre foi: um coronel daqueles bem folclóricos, grosseiro, machista. Passou por diversas esferas do poder em seu estado, empregou parentes, se viu envolvido em denúncias de corrupção por onde passou. Sua oratória política é de constranger qualquer pessoa com um mínimo discernimento. Vomita dados econômicos totalmente descabidos com a mesma convicção de um terraplanista. Mas é o único sobrevivente da esquerda após a eleição de 2018. Respira com a ajuda de aparelhos, mas parte da imprensa milita para que ele seja a fênix que irá retomar o poder algum dia.
Essa mesma imprensa, tão progressista e lacradora, ignora intencionalmente o fato de que o velho político ameaça de expulsão e expõe publicamente uma deputada simplesmente por contrariar uma questão fechada de seu partido, sem avaliar os motivos que a levaram a contrariar o voto imposto pela legenda. Em evidente contradição, essa mesma imprensa, que tanto defende a pauta feminista, não dá voz a Tabata Amaral e também não se importa se Ciro Gomes está cometendo mansplaining, impondo a sua maneira de agir a uma parlamentar que representa mais de 260 mil eleitores.
Leandro Bortolassi, jornalista com MBA em Gestão Empresarial e Marketing, é sócio-fundador e CEO da agência Eight.