O papel dos artistas, inventores e de todos aqueles que trabalham com a construção de memórias e comunicações é o legado na construção de narrativas, da contação de histórias, do patrimônio histórico e cultural. São as manifestações artísticas de toda natureza que levam a informação às pessoas que estão à procura das referências materiais, imagéticas e simbólicas na construção dos repertórios para conhecermos e convivermos nas cidades.
Quando visitamos as pinacotecas, o que somos capazes de escutar? Qual história aquele espaço é capaz de nos contar? Quando nos alimentamos com a comida local, os pratos típicos da região, da cidade, do bairro e das famílias, qual história fomos capazes de ouvir, ver e sentir? As relações afetivas vão se delineando a partir das percepções, das sensações das emoções porque o espaço, o ambiente foi absorvido pelo nosso cérebro. Por isso, mais que os souvenires que trazemos na mala como lembranças, ou os tíquetes dos museus que visitamos, ou o ingresso de algum espetáculo que colamos em nossos diários, o que todos nós estamos fazendo e não nos damos conta é “viver as cidades”.
É preciso também compreendermos quais são as nossas responsabilidades e papéis que desenvolvemos nas cidades. O primeiro é o registro de nascimento: documento civil que nos denomina e nos dá um local de nascimento, quem são nossos pais. Neste dia já passamos a exercer o nosso primeiro papel na cidade: o de cidadãos. Como tais, temos um conjunto de direitos e deveres. Mas para o pleno exercício da cidadania devemos desenvolver a capacidade de cuidar não só do espaço comum, mas uns dos outros. O cuidar das relações entre as pessoas, cuidar do nosso patrimônio histórico cultural, cuidar da nossa cidade, do nosso lar, do nosso planeta.
Precisamos reviver as praças, espaços multifuncionais
Os espaços dedicados às artes são espaços que nos proporcionam afetividades, sociabilidades, trocas. “Cidades Afetivas” é um manifesto na direção da política do bem viver, na direção de uma vida mais comunitária, solidaria. É aposta na via convivialista, sem ser utópico, mas na esperança de uma cidade mais democrática, aberta e solidária. Significa abraçarmos a nossa condição humana de sujeitos cientes, mas que também somos imperfeitos, individualistas, consumistas e predadores do planeta. Mas por sermos cientes sabemos que é preciso romper essas fronteiras para construirmos uma nova política que procure refundar a ética e nos religue com os outros e com o cosmos. Se não trilharmos um caminho por cidades mais afetivas e humanas, as cidades, seus espaços e as pessoas estarão rumando ao abismo. Basta vermos os países fechando as fronteiras para os imigrantes e refugiados.
Zygmunt Bauman, falecido recentemente, afirmou, em seu livro Ensaio sobre o Conceito de Cultura, que “dominar a cultura significa dominar uma matriz de permutações possíveis, um conjunto jamais implementado de modo definitivo e sempre inconcluso – não uma coletânea finita de significações, é a arte de reconhecer seus portadores. Convite a constante mudança”. No Manifesto Convivialista, Edgard Morin ressalta a importância da metamorfose aposta nessa ideia: a afetividade presente no resgate das relações comunitárias. Um novo caminho sereno entre crescimento e decrescimento simultaneamente.
Imersas em concreto, as cidades formam espaços opressores ao nosso espírito e produzem grande instabilidade social e emocional, por conta de muitos espaços monofuncionais, como os shopping centers, e do uso do automóvel. Agora precisamos reviver as praças, espaços multifuncionais. Um bom exemplo são os processos de requalificação de áreas degradadas para outros usos, o que já acontece em várias cidades do mundo, como Barcelona e Buenos Aires; o que acontece aos domingos na Avenida Paulista, em São Paulo, que é fechada para possibilitar novas formas de convivência com o espaço; e em Colônia del Sacramento, no Uruguai, que tem espaços para a prática do slow food, movimento que ganhou notoriedade no norte da Itália e hoje é uma das saídas estratégicas apontadas pela União Europeia para vencer a crise.
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Hortas urbanas comunitárias, passeios a pé para apreciar o grafite (como proposto pelo coletivo Expressão Urbana SP), o projeto Senta Aqui e Conversa Comigo (uma ação social para promover encontros de pessoas em espaços públicos), batalhas cosplay no Parque Villa Lobos vão delineando cada vez mais os espaços para os afetos. A praça lotada, a rua animada, o mercado, parques, bares, cafés representam espaços multifuncionais, onde estamos sempre dispostos a encontrar e participar.
Ressignificar o espaço das cidades é fundamental para a sociedades que virão, principalmente porque será a primeira geração de pessoas que só viveu com a vida mediada pela tela dos smartphones. Os mais velhos serão como mentores dessas gerações, porque os jovens terão de aprender a falar, ouvir, comunicar e sentir. Se na história dos povos indígenas a sapiência foi transmitida pela oralidade, é de lá que vamos ter de buscar inspirações para falar, contar histórias, viver mitos que possam dar sentido a essa nova vida. Nem todos entenderão, nem as cidades serão transformadas em sua totalidade, mas teremos espaços para pessoas que buscam o que vem do coração: um resgate antropoético do existir. Essas pessoas devolverão às cidades seu espaço: o local da festa, do encontro, o espaço para os afetos.
“Cidades Afetivas” é uma via imaginaria poética porque os afetos só podem ser construídos e sentidos no coração. É a aposta que os artistas são os anunciadores do futuro porque as artes são instrumentos de religação dos afetos nas cidades do futuro e da cidadania do presente.