Eis que surge, no início do atual governo, o tão falado “projeto de lei anticrime”, capitaneado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Trata-se de uma proposta de alteração em nada menos do que 14 leis, incluindo o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal.
Primeiramente, é de se louvar a iniciativa. O quadro atual da persecução penal no Brasil é preocupante: a impunidade, sobretudo de determinados crimes, é evidente. Temos uma legislação processual penal antiquada, que remonta à ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, e uma execução de penas falida e ineficiente. Mudar é necessário. Vale a referência ao ex-presidente americano John Kennedy, quando afirmou que “a mudança é a lei da vida. E aqueles que apenas olham para o passado ou para o presente irão com certeza perder o futuro”.
Neste sentido, algumas das propostas apresentadas no referido projeto merecem destaque pelo seu acerto: as medidas para aprimorar o perdimento do produto do crime (atualmente nebulosas no procedimento processual penal); a adoção de soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade (como o plea bargain); a criação, no Código Eleitoral, de crime de utilização de caixa dois em eleições; o aprimoramento das diligências para investigação de crimes, dentre outros. Tais inovações tendem a desatar o nó do paradoxo do processo penal, que deve aliar os direitos e garantias individuais e a efetividade das sanções.
A rápida resposta do atual governo com a formulação das sugestões apontadas é digna de elogios
Por outro lado, nota-se, no bojo das sugestões apresentadas, alterações preocupantes em um sistema constitucional como o nosso. Basta citar, exemplificativamente, a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância (tema que, aliás, será objeto de julgamento pelo STF em futuro próximo); o início de cumprimento de pena do acusado por crime doloso contra a vida logo após a decisão do Tribunal do Júri; a incerteza quanto à nova conceituação de legítima defesa; a elevação de penas e o estrangulamento do instituto da prescrição. Tais discussões não são novas e demandam debates entre a sociedade, os operadores do direito e entidades como a OAB (que já informou a criação de comissão de juristas para a análise do referido projeto), as associações de juízes e o Ministério Público. Não se pode, portanto, taxar de “novos” velhos temas controvertidos e extremamente sensíveis em nosso sistema constitucional. Desta feita, a lembrança é do imortal William Shakespeare, em um de seus sonetos: “As pirâmides que novamente construíste não me parecem novas, nem estranhas; apenas as mesmas com novas vestimentas”.
Assim é que a preocupação, portanto, não é com a mudança: ela é sempre bem-vinda. Preocupa, isto sim, a elaboração e análise conjunta de um pacote de alterações que tratam de assuntos que vão desde aspectos de segurança pública até de tipicidade penal, passando por alterações processuais e mudança de conceitos dogmáticos consagrados, como a legítima defesa. A advertência é feita para que o Congresso Nacional separe o joio do trigo, analisando individual e exaustivamente cada uma das propostas. Há algumas excelentes; outras, nem tanto. Não é possível, portanto, aprovar alterações tão significativas em uma canetada, como advertiu o recém-empossado presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Com acerto, disse que “tão forte quanto o desejo de conter a escalada de violência e da impunidade é o desejo de realizarmos tal tarefa como uma sociedade justa, democrática e moderna que reconhece a importância dos direitos fundamentais e o respeito ao devido processo legal”.
Os ventos da mudança são necessários. A rápida resposta do atual governo com a formulação das sugestões apontadas é digna de elogios. Cabe, agora, um processo legislativo imparcial e democrático, a fim de colher do projeto aquilo que há de melhor, sem descurar, contudo, da essência constitucional da persecução penal brasileira. Urge, pois, uma mudança racional, sem açodamentos, ética e técnica. Paradigmas podem mudar, desde que em procedimento despido de emoções e com o objetivo único de aprimorar o que, sabe-se, não está bom.
Por tudo isso, fico com Clarice Lispector: “Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade”.