Em 1938, na noite do Dia das Bruxas, A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, foi levada ao ar pela rádio CBS no programa The Mercury Theatre on the Air. A rádio norte-americana, por meio de toda sua rede afiliada, interrompeu sua programação para noticiar uma suposta invasão alienígena. Na verdade, nada mais era que um programa semanal, onde a história de A Guerra dos Mundos era dramatizada, pelo jovem Orson Welles, de 23 anos de idade. Mercury era a companhia teatral fundada por Welles e John Houseman que havia produzido vários sucessos na Broadway. No rádio, eles adaptaram uma série de clássicos literários, como Drácula, de Bram Stoker (em junho de 1938) e as aventuras de Sherlock Holmes, de Conan Doyle (setembro do mesmo ano).
Mas, com A Guerra dos Mundos, Welles resolveu inovar.
Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, descobrir como a mídia pode insuflar um terror muito mais contagiosos e epidêmico que qualquer vírus.
Welles era um rapaz criativo, travesso e sedento de público. Primeiro, pediu ao roteirista Howard Koch que transpusesse a história do interior da Inglaterra para a zona rural dos Estados Unidos. Depois decidiu fazer a narração em forma de boletins noticiosos e depoimentos “ao vivo”.
No começo do programa a rádio começou a transmitir um concerto ao vivo da orquestra de Ramon Raquello no Park Plaza, em Nova York, então um boletim especial interrompeu a apresentação e anunciou a queda de um meteorito em Grover's Mill.
Reportagens externas, entrevistas com testemunhas que estariam vivenciando o acontecimento, opiniões de peritos e autoridades. Então, o pior aconteceu. Da cratera aberta pela pedra espacial, algo começou a se mexer. Dali assurgiu uma máquina titânica e grotesca de três pernas com vários tentáculos de metal.
Efeitos sonoros, sons ambientes, gritos, a emoção dos supostos repórteres e comentaristas. Os curiosos que se aglomeravam no local entraram em pânico. Gritos, correria e sons estranhos emitidos pela bizarra máquina. A música voltou a tocar, mas foi interrompida de novo, agora para que um “repórter” relatasse a matança promovida por nada mais, nada menos, que invasores do espaço sideral.
O tal repórter da CBS, aos gritos de agonia, foi pulverizado, numa atuação digna de Oscar. Na rádio alguém tomou o microfone para mencionar que sete mil militares, enviados para conter a coisa do outro mundo, haviam sido massacrados.
Quem pegou o programa pelo meio, achou de fato que a Terra estava sendo invadida por alienígenas e um medo, mais epidêmico e contagiosos do que qualquer vírus, tomou conta de todos os ouvintes. Três fazendeiros de Nova Jersey chegaram até enxergar discos voadores.
A ideia inovadora de Welles – futuro pai do Cidadão Kane – não saiu barata. Milhares de dólares em danos – gente que às pressas, deixou seus lares arrebentando cercas e para-choques com seus veículos, acidentes nas estradas, confrontos com a polícia local que, àquela altura, nada sabia –, jornais de todo o mundo noticiavam o pânico causado pela transmissão, autoridades governamentais exigiam uma cópia do programa para análise e, nos meses seguintes, Welles e a CBS foram alvo de centenas de ações na Justiça – mas nenhuma foi bem-sucedida.
O estrago foi realmente enorme.
Estima-se que o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas, das quais metade o sintonizou quando já havia começado perdendo a introdução que informava tratar-se de uma obra de ficção. Destas, pelo menos 1,2 milhão de pessoas acreditou ser um fato real e iminente, entrando em pânico, sobrecarregando linhas telefônicas, com aglomerações nas ruas e congestionamentos causados por ouvintes apavorados tentando fugir do perigo.
O pânico e o caos paralisaram três cidades, principalmente em localidades próximas a Nova Jersey. Houve fuga em massa e reações desesperadas de moradores também em Newark e Nova York.
Veja, meu bom, o rádio era o principal veículo de comunicação em massa da época. Para se ter uma dimensão do ocorrido, tente imaginar a rede Globo de televisão, interrompendo sua programação normal para mostrar uma invasão alienígena no Rio de Janeiro.
Grande parte da população não tem acesso às plataformas de streaming, contando apenas com a programação da TV aberta. Uma parcela ainda maior jamais ouviu falar de H. G. Wells.
E se você é dessas pessoas que acredita em tudo que lê na internet, saiba que é um sério candidato a um ataque de nervos. As fake news estão por toda parte e qualquer informação coligida via web deve ser checada através de vários canais, de preferência, isentos de natureza política.
Opiniões políticas, no presente momento, definitivamente, revelam o pior aspecto do ser humano. A peste e a morte que grassam pelas ruas não respeitam credo, nem raça, muito menos ideologia. E, se existem pessoas do meio público dispostas a desviar recursos públicos destinados ao combate da pandemia, devemos nos ater a uma verdade ainda mais contundente e terrível: monstros existem.
E suas odientas quimeras estão incubadas em todos os lugares.
No momento em que vivemos, em meio à contradições e incerteza, à caça de altos índices de audiência, o alarmismo é a tônica da maioria dos telejornais, cujos âncoras – que se dizem preocupados com vidas humanas –, diariamente, reforçam o hórrido impacto dos números sobre nós, sem se importarem com o abalo emocional que isso nos causa.
O livro Saúde e jornalismo: interfaces contemporâneas, organizado por Kátia Lerner e Igor Sacramento, Editora Fiocruz (2014), não poderia ser – com o perdão do trocadilho – mais contemporâneo. Para além das implicações das narrativas jornalísticas na construção dos cuidados com epidemias e com os riscos de adoecer, sofrer e morrer, o livro aborda percepções sobre o SUS e os serviços públicos de saúde e sintetiza muito bem o clima de assepsia coletiva e incerteza insuflado pela mídia jornalística com base em estratégias narrativas calcadas no medo.
Como observa Fritjof Capra, notável físico teórico e escritor que desenvolve trabalho na promoção da educação ecológica: “Vivemos num mundo onde os micróbios estão sempre tentando atingir-nos, despedaçar-nos célula por célula, e só continuamos às custas das diligências e do medo”.
Infelizmente, no lugar de, diligentemente, orientar e acalmar a população, a mídia televisiva e jornalística alimenta e amplifica seus temores.
Orson Welles demonstrou ser evidente que a influência midiática, de tão forte e impactante, pode causar reações imprevisíveis nos ouvintes e telespectadores. Sua apresentação na CBS o tornou famoso e, segundo os cientistas de comunicação, foi o programa que mais marcou a história da mídia no século 20.
Aparentemente, a disputa pelo odiento título no presente século já começou.
Mas pior que um vírus que muta – com perdão do neologismo – é o gênero humano que ao invés de se adaptar, reage ao medo com impensáveis atos de violência. Nesse ponto, é devida uma reflexão e um mea culpa por parte da sociedade.
Nessa abstinência social, muita gente, dentro de casa, passou a se conhecer melhor. Nem sempre isso é positivo. Convivência pacífica definitivamente não é uma das principais virtudes do ser humano e, infelizmente, o aumento do número de casos de violência doméstica é efeito infesto da quarentena.
Só no Estado de São Paulo, onde a quarentena foi adotada no dia 24 de março, a Polícia Militar registrou um aumento de 44,9% no atendimento a mulheres vítimas de violência, o total de socorros prestados passou de 6775 para 9817 ocorrências. Casos de feminicídios também subiram, de 13 para 19 por mês (46,2%).
O isolamento social intensifica a convivência entre os familiares, o que pode aumentar as tensões. O contexto de apreensão, incertezas e adversidades impostas pela pandemia e supervalorizado pela mídia em geral, colabora para o aumento das discussões entre casais e, via de consequência, as agressões físicas se viabilizem.
Há quem leve essa violência para rua, como se viu durante os protestos mais recentes, numa paródia tupiniquim, muito da ruim, do que foi aquela noite de 1938. Há, portanto, quem aglomere-se em turbas – uma óbvia contradição aos preceitos vigentes de saúde pública – e dirija sua frustração, raiva e sofrimento para quem estiver no caminho, deixando um incalculável rastro de destruição.
Se com mais gente com os nervos à flor da pele é ruim, sozinho é pior ainda. Estatísticas mundiais indicam o aumento dos casos de tentativa de suicídio após eventos extremos. Os impactos da pandemia de Covid-19 na saúde mental podem apresentar desde reações normais e esperadas de estresse agudo por conta das adaptações à nova rotina, até agravos mais profundos no sofrimento psíquico.
Medo e violência que emerge, como ondas, de dentro de cada um de nós. Tudo aquilo que assistíamos nas telas de cinema ou nas séries de TV aparentemente veio à tona nesse ano de 2020.
Medo incubado, aguardando o momento de romper a casca fina, como no filme de Johnny Kevorkian, Await Further Instructions (2018). Nesse contexto, o filme de Kevorkian é assustadoramente realista. Similar a Videodrome (1982) de David Cronemberg, sua obra ficção/terror nos mostra que a TV há muito deixou de ser uma janela aberta para o mundo para se transubstanciar em uma tela que molda nossa consciência e nos induz a replicar pensamentos com cega obediência.
Para além da apresentação “bem-sucedida” de Welles em 1938, são esses os roteiros cinematográficos que nos levam a questionar o papel da mídia em nossas vidas e concluir que tanto as grandes emissoras de TV, como veículos de comunicação impressos, deveriam repensar suas estratégias para captação da audiência e ou leitores, antes que o pior volte a acontecer e o ser humano se torne, definitivamente, uma doença autoimune atacando a si próprio e seu semelhante na busca de algum alívio emocional.
Marcos R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.
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