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Os 11 faraós

Fachada do STF. (Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF)

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Acontecimentos recentes envolvendo o STF apontam para desastrosas consequências políticas. Como se diz na máxima popular: “Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. De um lado, está um parlamentar de postura truculenta cuja ignorância serviu de motor para desferir impropérios e insinuações que são extemporâneas, para dizer o mínimo, e que em nada contribuem para o aprimoramento da ainda tíbia democracia brasileira. Faltou decoro. Do outro lado, um ministro do STF rasgando a Constituição com malabarismos jurídicos ao usar um mandado para prisão em flagrante. E mais: o juiz responsável pela condução da audiência de custódia para decidir se o deputado continuaria preso ou não é assessor do ministro envolvido na querela.

Os vícios de natureza jurídica aqui apontados não foram tirados da cartola. Sigo os ensinamentos de juristas respeitados e estudiosos do Direito Constitucional que têm reclamado o resgate das prerrogativas do STF em seus devidos limites sem a postura de magistrados que se comportam como ungidos por forças suprassensíveis como se fossem faraós com poderes inquestionáveis.

O objetivo deste artigo não é discorrer sobre a interpretação correta da lei. Não sou jurista e muito menos estudioso do arcabouço jurídico. Ademais, isso tem sido exaustivamente discutido por pessoas capacitadas com a devida formação acadêmica. A intenção é, com efeito, chamar a atenção para o quanto há de simbólico nas ações humanas tanto nas coisas.

Os desmandos praticados pelo Poder Judiciário encontram sustentação em valores culturalmente construídos em um país que ainda tem um pé naquele passado, quando éramos uma pirâmide social cujo topo era formado por sangues-azul e a base, pela plebe. As mudanças necessárias não se limitam, portanto, à política. É também uma questão que reside na educação ou na formação do povo – os que comandam o país nos mais altos postos são parte dele.

Em democracias mais evoluídas, o deputado arrolado sofreria no máximo algum tipo de reprimenda pelos seus pares, pois, na prática, o fato não passa de um infeliz uso de palavras e ideias, mas que estão, concordemos ou não, sob o guarda-chuva do sagrado direito de se expressar amparado pela Constituição. Quanto ao ministro, sua atitude, portanto, é no mínimo contraditória, na medida em que usa artifícios paradoxais antidemocráticos contra alguém acusado de antidemocrata. Há questões simbólicas por trás disso, e cuja origem precisa ser melhor compreendida e absorvida.

Os ministros do STF, ao assumirem seus postos, entendem, ao que parece, que passam a fazer parte não apenas de uma corte suprema do Poder Judiciário, mas de uma corte de encastelados com direitos acima dos daqueles que ficam do portão para fora. Viram “aristocratas”. Nesse sentido, como não citar o edital que trata da alimentação a ser servida no STF, oferecendo lagostas e bacalhau regados a vinhos premiados? A verba gasta com mordomias, por certo, não resolveria nossas mazelas sociais. Mas não há como renegar uma questão de natureza simbólica embutida nesse fato, na medida em que ele denuncia um debilitado sentido de patriotismo e empatia com a condição de pobreza de milhões de brasileiros.

Voltando aos fatos, segundo o Banco Mundial, a pobreza e desigualdade avançam no Brasil desde 2014. A pesquisa feita revela que, enquanto a renda média dos brasileiros cresceu, a dos que estão na linha da pobreza caiu 1,4% por ano. Cerca de 85 milhões de pessoas estão na faixa dos 40% mais pobres ou à margem da justiça social, e equivalem a sete vezes a população de Portugal.

As regalias dos príncipes togados não se encerram nas refeições dignas de um faraó. Segundo o levantamento feito pela Gazeta do Povo, em 2020, ano de pandemia que paralisou o mundo e que contabiliza a perda de milhões de vidas e de empregos, o STF gastou apenas 5% a menos do que foi gasto em 2019. O plano de saúde dos servidores consumiu R$ 13,7 milhões. Que moral um ministro do STF tem para falar de um suposto genocídio ou da precária assistência aos nossos irmãos de Manaus? Como deixar de imaginar que esses magistrados, ao se darem direito a essas regalias, não irão também se sentirem à vontade para lançar mão de arroubos autoritários?

O palácio ocupado pelos ministros é um patrimônio do povo construído em momento histórico, no qual Brasília representava o início de um novo destino para o país. Se era apenas um sonho ou uma fantasia de um pensamento romântico, que isso seja discutido em outro momento e no contexto devido. Mas posso garantir que, para os que participaram de sua construção, o suor derramado a cada prego fincado ou a cada saco de cimento carregado nas costas era parte da vontade de ser partícipe da construção de um futuro melhor para o país. Sentimento esse transmutado para a arquitetura. Os edifícios primordiais, entre os quais está o STF, têm como referência a linguagem das obras arquitetônicas das grandes civilizações da Antiguidade – Brasília foi pensada também como como marco de uma nova civilização ou de um país próspero e socialmente justo a partir da política desenvolvimentista.

À frente da sede do STF, de filiação greco-romana, está a bela interpretação de Alfredo Ceschiatti de um dos símbolos da Justiça, inspirada nas esculturas dos faraós. As representações dos soberanos eram feitas sobre um plano elevado como forma de impor dignidade e respeito. O observador, portanto, posiciona-se em um plano inferior ou no do piso, reverenciando a figura do faraó circunscrito pelo perímetro do plano que, por sua vez, representa o espaço sagrado do poder político. A criação de Ceschiatti, influenciada pela estética egípcia, segue o mesmo raciocínio formal, mas com uma diferença fundamental: um dos pés extrapola a base em alguns centímetros, ao contrário dos pés dos faraós, contidos pelo perímetro da base. A mensagem simbólica é: a Justiça deve ser soberana, mas não autoritária e tirânica, e deve estar ao alcance de todos.

Os ministros não são nada mais e nada menos que guardiões da Constituição e não 11 poderosos faraós acima do bem e do mal, servindo como acólitos das forças políticas que os indicam ou como legisladores e ativistas políticos e promotores da insegurança jurídica. Quem sabe, um dia, quando nossa democracia amadurecer, o STF volte a se ater à sua prerrogativa primordial, eliminando assim as chances para que mais uma vez alguém ouse rogar atos antidemocráticos contra ministros verdadeiramente honrados, e não mais na condição de faraós de toga. Até lá, estejamos mais atentos não somente aos fatos, mas aos seus simbolismos, pois são aspectos simbólicos que de fato mostram as verdadeiras intenções e o caráter de seus atores.

Francisco Lauande Jr., arquiteto e mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura, é fundador do canal de documentários e cursos Documenta e da revista “Pináculo”.

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