Hillary Clinton é a representante dos interesses da “elite globalista”. A acusação funciona como o tema articulador da campanha presidencial de Donald Trump. “Tornar os EUA grandes novamente” – o slogan do candidato republicano sintetiza uma mensagem nacionalista, que se completa com a promessa de proteção dos “empregos americanos”, supostamente ameaçados por imigrantes mexicanos e fluxos de mercadorias importadas da China e do México. Do mirante da Trump Tower, o antiglobalismo aparece como bandeira da ultradireita. De fato, porém, a aversão à globalização é uma partitura compartilhada nos polos extremos do espectro ideológico.
Trump classificou o apoio de Bernie Sanders a Hillary como uma traição aos eleitores da esquerda do Partido Democrata, conclamando-os à retribuição – ou seja, a aderir à sua campanha. São colossais as divergências entre Sanders e o magnata bufão. Entretanto, eles se encontram no coral do protecionismo. Cedendo ao assédio de Sanders nas primárias democratas, Hillary abdicou de sua antiga defesa do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), firmado por Bill Clinton, e reverteu sua posição favorável à Parceria Transpacífica, principal iniciativa de diplomacia econômica de Barack Obama. Na campanha eleitoral americana, o único arauto da liberdade de comércio e de investimentos é o caricatural candidato “libertário” Gary Johnson.
A globalização não é um fenômeno recente. As Grandes Navegações foram seu impulso inicial, na aurora da Idade Moderna. Muito depois, na era industrial, entre as décadas finais do século 19 e a Grande Guerra, os fluxos de investimentos europeus e americanos no exterior configuraram um mercado mundial. Não ocorreu a Karl Marx ou Friedrich Engels, que naquela época fundavam o movimento comunista, produzir uma sentença condenatória da globalização. Os “pais fundadores” pensavam, pelo contrário, que o comércio e os investimentos difundiam a tecnologia moderna e as relações capitalistas de produção, semeando a terra na qual brotaria a árvore do socialismo. A esquerda só se tornou antiglobalista mais tarde, sob a influência de uma interpretação nacionalista do conceito de imperialismo.
O antiglobalismo de direita não é apenas nacionalista, como o de esquerda, mas marcadamente nativista
A deriva nacionalista da esquerda é uma história essencialmente latino-americana, pontuada pelos flertes recorrentes dos comunistas com líderes populistas de diversas extrações. Hoje, contudo, o estandarte antiglobalista é empunhado também pela “nova esquerda” europeia, que se deixou seduzir pelo culto ao castrismo e ao chavismo. O grego Syriza e o espanhol Podemos traduziram sua aversão à globalização como rejeição à União Europeia, desenvolvendo um “euroceticismo” que se abranda aos poucos, sem desaparecer por completo. Jeremy Corbyn fez campanha contra o ingresso do Reino Unido na Comunidade Europeia em 1975, quando era um jovem militante sindical. No referendo do “Brexit”, como líder esquerdista do Partido Trabalhista, simulou defender a permanência, posição partidária oficial, mas quase abandonou a cena pública e, nos seus raros discursos, reclamou das regras de livre comércio que formam os pilares da União Europeia.
Na Europa, o antiglobalismo de esquerda manifesta-se, cada vez mais nitidamente, como rejeição à Alemanha. Do lado de cá do Equador, na América Latina, a esquerda enxerga na globalização um veículo para a modernização do “imperialismo americano”. Curiosamente, mesmo se essa preferência tática deve permanecer oculta, uma vitória de Trump ajusta-se bem melhor aos interesses da esquerda que um triunfo da “globalista” Hillary.
Só o trecho “econômico” da partitura do antiglobalismo une os extremos do espectro ideológico. Sanders está proibido de aproximar-se de um Trump que anuncia a deportação de milhões de imigrantes ilegais e a construção de um muro na fronteira com o México. Corbyn não pode ultrapassar a linha divisória que o separa dos “eurocéticos” da direita xenófoba, organizados no Ukip. O Syriza e o Podemos precisam manter distância de partidos antieuropeus de extrema-direita. A acusação da esquerda é contra a livre circulação de bens e capitais, não contra o trânsito de imigrantes.
O antiglobalismo de direita não é apenas nacionalista, como o de esquerda, mas marcadamente nativista. A “nação do sangue”, referenciada na tradição e num conceito rudimentar de cultura, funciona como pedra basilar das correntes direitistas que se erguem contra a globalização. Trump descreveu-se como o “Mr. Brexit” dos EUA: de certa forma, essa é uma boa definição para o porta-bandeira da “nação de colonos”, por oposição à “nação de imigrantes”. No fim das contas, faz sentido a simpatia do magnata em relação a Vladimir Putin, um ídolo dos partidos europeus de ultradireita.
O diagnóstico dos antiglobalistas está fundamentalmente errado. As estatísticas evidenciam que a globalização propiciou vastas reduções da miséria na Ásia (em especial na China), na América Latina e na África. Os principais beneficiários desse efeito foram os países mais abertos às correntes de comércio e investimentos. Entretanto, as rápidas mudanças tecnológicas impulsionadas pela globalização aprofundam as disparidades de renda e punem os trabalhadores assalariados das indústrias menos dinâmicas, particularmente na Europa e nos EUA. O antiglobalismo nutre-se desses fortes deslocamentos sociais, que atingem as bases eleitorais históricas dos partidos políticos tradicionais.
O Brexit só venceu porque atraiu os votos das velhas regiões industriais inglesas, antigas fortalezas trabalhistas. Na França, a Frente Nacional herdou parte significativa do eleitorado comunista do passado recente. No mapa do Colégio Eleitoral americano, a chance de Trump concentra-se nos eleitores brancos de baixa renda que tendiam a se inclinar para os democratas. O antiglobalismo de direita é politicamente mais eficiente que o de esquerda.