Em resposta ao vídeo produzido por nosso mandato intitulado “5 mentiras sobre a Reforma da Previdência”, o economista liberal Pedro Fernando Nery publicou na Gazeta do Povo uma lista de dez supostos enganos cometidos por nós. Neste texto, esclarecemos cada um destes pontos.
Engano 1: “Déficit tira do excluído para dar para o incluído”. Nery equivoca-se ao dizer que o aporte feito pelo Estado à Previdência Social é proveniente dos trabalhadores mais pobres que estão excluídos desse sistema. Na verdade, os tributos não previdenciários que compõem a Seguridade Social (e portanto integram o aporte do Estado) incidem principalmente sobre lucros de empresas – como a Contribuição Social sobre o Lucro das Empresas (CSLL) e o PIS/Pasep – e receitas de loterias.
Se o aporte do Estado deve ser maior para cobrir as despesas da Seguridade Social, e não só da Previdência, e se a carga tributária sobre os mais pobres não pode aumentar, com o que concordamos, o PSol defende uma reforma tributária progressiva, ou seja, que aumente a carga tributária sobre os mais ricos por meio de taxação de dividendos, grandes fortunas, patrimônio, etc. Somente com a mudança na alíquota do Imposto de Renda proposta pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), seria possível arrecadar R$ 1,570 trilhão de reais em dez anos, muito mais do que o suposto corte de despesas que seria feito pela reforma da Previdência. A proposta sugere que alíquotas de Imposto de Renda para quem ganha mais de 40 salários mínimos mensais (cerca de R$ 40.000) subam de 27,5% para 35% e para 40% (no caso de rendimento mensal superior a 60 mínimos mensais). As 750 mil pessoas que seriam afetadas por essa medida (sem, contudo, que seu conforto chegasse perto de ser ameaçado) são as verdadeiras privilegiadas da nossa sociedade, e não os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social que, de acordo com o INSS, ganham em média menos de R$ 1.300. Ancorando-se num preconceito do senso comum de que os funcionários públicos seriam “marajás” que ganham muito, trabalham pouco e se aposentam cedo, Nery também os rotula como “privilegiados”. Mas os funcionários públicos não são, em sua maioria, ministros do STF ou juízes federais, mas professores, policiais, enfermeiros, médicos e outros trabalhadores que fazem atendimento direto à população, trabalham muito e são pessimamente remunerados.
Além disso, Nery repete a falácia de que a Previdência promove desigualdade social. Na verdade, como bem demonstrado pelos economistas Pedro Rossi, Esther Dweck e Arthur Welle, as desigualdades do sistema previdenciário são causadas pela desigualdade presente na sociedade e não o inverso. Ao contrário, a Previdência é uma das principais políticas públicas no Brasil de combate à pobreza. Como pode-se ver em dados da Secretaria de Previdência o índice de pobreza entre idosos é drasticamente inferior ao da população em geral, ao passo que esse mesmo índice seria muito maior caso não houvesse a cobertura previdenciária.
O índice de pobreza entre idosos é drasticamente inferior ao da população em geral
Mas é claro que a Previdência poderia ser um instrumento ainda mais poderoso de transferência de renda. Para isso, deveríamos aumentar pesadamente a contribuição dos 1% mais ricos da sociedade, os verdadeiros privilegiados. Nery, os demais economistas liberais e o governo apoiam o combate a estes privilégios?
Enganos 2, 3 e 4: “Déficit tira da Saúde e da Assistência para dar à Previdência”; “Previdência é deficitária mesmo sem militares”; “BPC não entra no déficit da Previdência”. Nery utiliza aqui o argumento falacioso de que a precariedade dos serviços públicos considerados pelo senso comum como mais importantes seria decorrente dos gastos excessivos com um serviço cuja pertinência se desconsidera, a Previdência. Primeiramente, deveria ser inquestionável a relevância de um seguro para indisponibilidade ao trabalho em economias capitalistas. A Previdência de caráter solidário foi uma conquista da classe trabalhadora alemã de finais do século 19 que trouxe um imenso avanço civilizacional para a humanidade sem o qual nos encontraríamos na situação do Japão pré-industrial em que os idosos eram abandonados nas montanhas para que esperassem a morte.
Isso não significa que os demais serviços não sejam importantes. No entanto, a garantia de alguns serviços públicos não depende da precarização de outros, como se devêssemos escolher entre ser atendido num posto de saúde ou colocar nossos filhos em escolas, ou entre ter saneamento básico e aposentadoria na velhice. Essa é uma chantagem imposta pelos grandes capitalistas para que não enxerguemos que essa encruzilhada poderia ser evitada caso eles fizessem o que nunca fizeram na história do Brasil: os tais “sacrifícios” que exigem dos trabalhadores. Aliás, se a preocupação dos economistas liberais é de fato a qualidade da Saúde Pública, por que então não defendem o fim da Emenda Constitucional 95 que congela por vinte anos os investimentos nessa e outras áreas sociais?
Isso posto, caberia outra pergunta: o que realmente tira recursos da Seguridade Social? Em primeiro lugar, como mencionamos no vídeo, somente em 2015 as sonegações representaram um terço do déficit da Previdência daquele ano. Esses recursos deixaram de ser arrecadados porque há uma opção política por não fiscalizar. De acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), “ano a ano, a Receita sofre com reduções expressivas no orçamento, falta de concursos para recomposição de quadros, redução gradativa no pessoal especializado e sobrecarga de trabalho”. De acordo com dados do Sindicato, existem 9,7 mil auditores fiscais (para fiscalizar todos os desvios, não apenas previdenciários), enquanto estima-se a necessidade de 20 mil auditores. Em segundo lugar, em função da Desvinculação de Receitas da União que desvia 30% da arrecadação das áreas sociais. Em terceiro lugar, em função de desonerações generosamente concedidas a diversos setores empresariais que progressivamente drenaram os cofres da Seguridade Social. Somente em 2015, justamente o ano da recessão em que a arrecadação já seria menor, a Seguridade Social perdeu mais de R$ 157 bilhões em desonerações, de acordo com a Receita Federal.
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Além disso, Nery faz uma distorção absurda de nosso argumento, como se defendêssemos que recursos da Saúde fossem “desviados” para a Previdência. Obviamente não se trata disso. O que dissemos é que defensores da Reforma distorcem cálculos para exagerar o chamado déficit da Previdência. Por exemplo, se considerarmos o Benefício de Prestação Continuada (que é programa de assistência social) como despesa, devemos então considerar a totalidade das receitas da Seguridade Social, e não apenas a contribuição do INSS. Ou ainda, se considerarmos apenas arrecadação do INSS, não se deve contabilizar a aposentadoria rural como despesa já que ela é de caráter não contributivo. Manipulando receitas e despesas é possível apontar déficit em qualquer orçamento.
No mesmo sentido, Nery sugere que nós temos uma “birra com o BPC”. Muito pelo contrário! É a PEC 06 que parece ter “birra” com os idosos em situação de miséria já que propõe que eles ganhem apenas R$ 400 não reajustáveis para idosos com menos de 70 anos. Mas nós defendemos mais do que isso: lutamos pelos direitos previdenciários com benefícios que podem e devem superar um salário mínimo, cujo valor, aliás, está bem abaixo do que seria necessário para cumprir suas exigências constitucionais.
Enganos 5 e 6: “Reforma da Previdência na verdade ajuda o crescimento”; “FMI não é a contra o ajuste fiscal”. Neste ponto Nery expressa uma ingenuidade impressionante: “Se a reforma fosse ruim para a economia, por que o setor produtivo faria campanha por ela?” Apresento algumas razões.
Em primeiro lugar, porque nem todos os empresários são experts em macroeconomia mas reproduzem o discurso de economistas liberais que representam os interesses de especuladores do mercado financeiro. Aliás, aqui cabe um parêntesis interessante. Nery desqualifica os que negam o déficit da Previdência como se fossem representantes do lobby dos funcionários públicos. No mesmo sentido, é comum ouvir que sindicatos são contra a reforma da Previdência porque irresponsavelmente defendem “interesses corporativos”. Para quem propaga esse discurso, só não defendem interesses particulares os economistas liberais que defendem a reforma da Previdência, como o próprio ministro Paulo Guedes. Esses estão interessados apenas felicidade das futuras gerações... Fim do parêntesis.
Não é a dívida pública que eleva a taxa de juros, mas o contrário
Em segundo lugar, porque a consciência de classe da burguesia não é a mesma coisa que os interesses imediatos dos burgueses particulares – o segundo sempre prevalece sobre o primeiro. A farra que produziu a crise de 2008 é um exemplo disso. Os capitalistas que investem no setor produtivo estão interessados em se livrar da contribuição patronal ao INSS e por isso defendem a reforma da Previdência.
Em terceiro lugar, porque a diferença entre “capital financeiro” e “capital produtivo” é meramente conceitual. Em termos sociais, a classe que os detém é a mesma. Em outras palavras, um capitalista que possui uma fábrica também possui recursos em um fundo de investimento. Na verdade, atualmente os ganhos do capital financeiro superam muito os do capital produtivo e todas as grandes empresas do mundo lucram mais no mercado financeiro do que pela venda de seus bens e serviços. Esses capitalistas estão ávidos para abocanhar aposentadorias por meio de fundos de pensão que seriam criados com a capitalização.
Além disso, Nery novamente distorce nosso argumento como se defendêssemos aumentar benefícios previdenciários para promover crescimento econômico. Nosso programa para o desenvolvimento do Brasil engloba várias medidas, dentre elas uma reforma tributária de caráter distributivo que combata desigualdades, taxando o topo da pirâmide social para investir nas diversas áreas sociais (o que não significa tempo de contribuição de 5 anos, piso de benefícios de R$ 5 mil ou outros absurdos que Nery falsamente atribui a nós). Mas esse não é o tópico deste texto e nem do vídeo que veiculamos. Nosso argumento é que retirar renda de pessoas que ganham pouco (e portanto consomem tudo que gastam pois não conseguem poupar) desestimula o consumo e por consequência prejudica a economia. Como negar isso?
O argumento dos liberais que defendem pacotes de austeridade é o de que a redução das despesas do Estado diminuiria a dívida pública, que diminuiria os juros, estimulando o investimento e o consumo para promover crescimento. Ocorre que nada nessa equação é verdade. Não é a dívida pública que eleva a taxa de juros, mas o contrário. Mesmo que isso fosse verdade, o próximo passo não é. Porque os juros no Brasil são tão altos que seria preciso uma mudança muito radical na taxa Selic e no spread bancário (que é a diferença entre o que o banco cobra de juros nos empréstimos e quanto ele paga nos rendimentos das poupanças e contas correntes) para que o consumidor de fato se sentisse mais estimulado a gastar com cartão de crédito ou cheque especial. O FMI em 2014 reconheceu que essa fórmula não funcionou nos países europeus em que foi aplicada. Se Nery acha que entendemos o texto equivocadamente, ou se não foi isso que disse o FMI, propomos um outro exercício: aponte qualquer país do mundo, desenvolvido ou não, em que pacotes de austeridade recessivos como os que tem sido aplicados no Brasil tenham gerado um ciclo de desenvolvimento.
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Por fim, mais uma observação: a reforma trabalhista de fato não diz respeito diretamente a gasto público. Mas, assim como a reforma da Previdência, diz respeito a “reduções dos custos do trabalho”. A promessa era de que aumentariam os empregos. Mas qual foi o resultado? Aumento do desemprego e da informalidade. Será mesmo que ajustes geram crescimento econômico?
Enganos 7 e 9: “Brasil gasta sim muito mais com Previdência do que outros países”; “Morte de bebês sem esgoto não serve para debater aposentadoria”. Estes são os únicos pontos em que de fato cometemos um equívoco. Sem que mude, entretanto, a natureza do nosso argumento.
Dissemos que os países desenvolvidos da Europa gastam em média o equivalente a 30% do PIB com Previdência. Na verdade, esse gasto se refere à totalidade da Seguridade Social. Mas vejamos o dado correto, ou seja, quanto esses países gastam exclusivamente com Previdência? Entre 13% e 14%. Continua muito acima dos 7,5% que o Brasil gasta. Ou seja, nosso argumento perde força mas continua válido.
Também é verdade que para os cálculos previdenciários se considera o período de “sobrevida” (o tempo entre a aposentadoria e a morte) e não a expectativa de vida ao nascer. Entretanto, isso não invalida o nosso argumento pois os fatores que levam à desigualdade na expectativa de vida ao nascer também influenciam na qualidade de vida dos idosos. Por exemplo, um trabalhador braçal que passou a vida toda sendo mal remunerado certamente terá uma qualidade de vida pior do que aquele que não esteve nessa condição. É justo impor a mesma idade mínima para ambos? Além disso, como consta em artigo de Cláudia Collucci publicado na Folha de São Paulo, mudanças previdenciárias devem considerar não apenas o período de sobrevida mas o período em que o idoso pode viver com saúde. Apesar da expectativa média da população ter aumentado nos últimos anos, a qualidade de vida dos idosos caiu. Portanto, não se justifica exigir tempo de contribuição maior em função do aumento da sobrevida.
Engano 8: “Não, a maior fonte de gasto não são os juros da dívida.” Não é porque não houve superávit primário que os juros da dívida não foram pagos. Os encargos financeiros estão presentes nas diretrizes orçamentárias de todos os anos de qualquer ente federativo. Os dados são públicos e podem ser consultados por qualquer um. Bastaria consultar também se algum possuidor de títulos da dívida pública foi remunerado nos últimos anos. Se alguém recebeu é porque alguém pagou. Ocorre que em nenhum ajuste ou proposta de reforma se considera a possibilidade de reduzir essa fatia de gastos que remuneram os fundos de investimento. Por que será? Novamente: que tal combater esses privilégios?
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Engano 10: “Patroa se aposenta muito antes da empregada.” Para impor idade mínima, o governo argumenta, e Nery corrobora, que a maioria dos trabalhadores brasileiros já se aposenta por idade. O que ele se “esquece” de dizer é que hoje a aposentadoria por idade exige apenas 15 anos de contribuição, e não 20, como na PEC 06. Ou seja, consideremos, por exemplo, um homem que se aposente aos 65 anos com 15 anos de contribuição. Pela nova regra, ele teria que, na melhor das hipóteses, contribuir por mais 5, aposentando-se aos 70. Mas isso supondo que ele continue num emprego formal por mais 5 anos seguidos, o que, considerando sua idade e estrato socioeconômico, é muito difícil que aconteça. Na prática, esse mesmo homem poderia nunca se aposentar.
Para concluir, voltamos ao ponto primário da questão: por que precisamos de uma reforma da Previdência? Para economizar recursos públicos que são gastos com esse serviço? Nesse caso, por que então a PEC 06 propõe um sistema de capitalização cujos custos de transição são altíssimos e amplamente conhecidos? Para quem não está familiarizado com esse debate, cabe um parêntesis: o custo de transição existe pois, na capitalização, cada trabalhador contribui apenas para sua própria poupança individual, deixando de contribuir para a aposentadoria dos inativos. Desse modo, o Estado é obrigado a aportar esses recursos que deixam de entrar para garantir a aposentadoria daqueles que ainda estão no regime de repartição. No caso do México, a capitalização fez com que os gastos previdenciários do Estado saltassem de 1% do PIB para 4%. E 37 anos depois do Chile ter aderido ao modelo de capitalização, este país ainda gasta 2,5% do PIB anualmente com os custos de transição. Com certeza algo semelhante ocorreria no Brasil. Será mesmo que a PEC 06 visa resolver um problema fiscal? Se Nery está preocupado com o descontrole das contas públicas, sugerimos que seu próximo texto seja argumentando contra a capitalização.