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Muito pesquisei e muito encontrei sobre programas assistenciais, comparativos entre Bolsa Família e Auxílio Brasil, e análises opinativas sobre pontos positivos e negativos de ambos. Este texto, no entanto, busca exclusivamente apontar os erros do auxílio emergencial, adotado em virtude da pandemia de Covid-19, amparado na Lei 13.982/2020, publicada 13 dias após a declaração do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020.
De acordo com a Diretoria de Comunicação Social do Ministério da Cidadania, “foram beneficiados pela iniciativa, considerada modelo de referência inovadora de ações no combate à crise humanitária, no Fórum Ministerial para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe, cerca de 68,3 milhões de brasileiros, em um investimento de aproximadamente R$ 295,14 bilhões”. Mas não basta analisar os números sem provocar. Convido o leitor a refletir comigo com base em uma série de perguntas:
1. O mecanismo utilizado pelo governo federal, embora inegavelmente tenha ocorrido com viés absolutamente técnico, realmente foi fiel às regras adotadas pelo Ministério da Cidadania? 2. O valor investido chegou realmente no máximo a duas pessoas por membro familiar em única residência? 3. Dentro dos 68,3 milhões de brasileiros beneficiados, qual foi a cifra por associação familiar? 4. Algum mecanismo foi utilizado para identificar que o cidadão possa ter realizado o pedido sem declarar todos os membros da residência, sendo que os outros omitidos possam ter feito a mesma coisa? 5. Uma pessoa com carteira assinada não poderia receber o auxílio emergencial; sendo assim, quem garante que o valor aproximado de R$ 295,14 bilhões não caiu em mãos de brasileiros que negociaram com empregadores o adiamento do registro em carteira? 6. Se uma mãe “solo” (solteira) teve direito ao valor dobrado, ou seja, R$ 1,2 mil mensais, quem cruzou os dados para reconhecer que o filho residia verdadeiramente com a mãe? 7. Quantos pais separados negociaram para ambos receberem o auxílio, contrariando as regras e burlando o sistema? 8. Quantos brasileiros tiveram depósitos realizados automaticamente em suas respectivas contas da Caixa Econômica Federal pelo simples motivo de serem registrados no CadÚnico, embora estar no Cadastro Único não implicar necessariamente ser recebedor do então Bolsa Família? 9. De acordo com o regulamento, até duas pessoas por residência poderiam receber o benefício; com base nesta regra, por que houve pedidos negados com a justificativa de “membro familiar pertencente ao Cadastro Único”, sendo que este membro está apenas registrado, mas não possui Benefício de Prestação Continuada? Em outras palavras; o CadÚnico não representa em sua totalidade cidadãos assistidos pelo governo; o cadastro pode existir apenas, por exemplo, para tarifa social de energia elétrica, isenção em taxas de concursos públicos, idosos acima de 60 anos isentos de pagamentos em viagens interestaduais etc. 10. Quantos brasileiros tiveram de recorrer ao Poder Judiciário para obter o benefício? 11. Quantos brasileiros tiveram negativas em primeira instância? 12. Quantos brasileiros recorreram em segunda instância? 13. Quantos esperaram e/ou esperam até hoje uma resposta do Judiciário? 14. Quantos foram negados por desconexão do Poder Judiciário com as regras do auxílio emergencial? 15. E o mais triste: Quantos foram esquecidos pelo governo federal?
Após muito perguntar, garanto que não existem respostas para as perguntas elencadas. O Ministério da Cidadania, na ocasião comandado por Onyx Lorenzoni, obteve êxito na agilidade de implementação e contou com a excelência do Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, este ministro liberal que arregaçou as mangas e utilizou seu conhecimento para sistematizar o assistencialismo em primazia a qualquer intenção prioritária de seu liberalismo na gestão pública, levando-se em consideração, obviamente, o momento crucial de uma pandemia. Entretanto, o Ministério da Cidadania demonstrou enorme distância dos questionamentos da população brasileira. Hoje, a pasta, tendo à frente João Roma, continua sem um canal direto e objetivo com os brasileiros; consequentemente, exibe distanciamento muito maior com os mais vulneráveis. As respostas enviadas pela ouvidoria são automáticas e vagas, enfraquecendo a confiabilidade dos brasileiros que a procuram.
Hoje, a pasta, tendo à frente João Roma, continua sem um canal direto e objetivo com os brasileiros; consequentemente, exibe distanciamento muito maior com os mais vulneráveis
Em resposta oficial, a Coordenação de Relacionamento com a Mídia (CRM) da Defensoria Pública da União respondeu: “A DPU não dispõe de dados como as principais reclamações, apenas informações empíricas por amostragem. Entre os principais problemas relatados estão falta de atualização no CadÚnico, divergências relacionadas ao núcleo familiar e utilização pelo governo de bancos de dados desatualizados”.
Conforme dados disponibilizados pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi), dos 68,3 milhões de pessoas elegíveis, 19,5 milhões referem-se ao Bolsa Família, 10,5 milhões ao Cadastro Único e 38,2 milhões, ao aplicativo da Caixa. Mas os números são extremamente frágeis em termos de eficiência assistencialista. Houve ocorrências de inelegibilidade no cruzamento de dados pelo Dataprev, quando incorretamente pedidos foram barrados sob a alegação de que o segundo membro familiar possuía Cadastro Único. Igualmente, o número de solicitações atendidas pelo aplicativo da Caixa tem excedente de pessoas por residência e ausência de pessoas que atendiam aos critérios.
Um programa que repassa R$ 240,4 milhões aos elegíveis por decisão judicial demonstra sua incompetência do ponto de vista técnico, partindo da origem ministerial. E a existência de indeferimentos judiciais em que os magistrados não entenderam a diferença entre Cadastro Único e Bolsa Família leva à conclusão de que o valor não foi bem direcionado.
Devido à ausência de informação – principalmente da parte do Ministério da Cidadania –, não foi possível mensurar se o valor seria maior ou menor em relação às pessoas do aplicativo Caixa, mas confirmamos que o destino da verba pública não chegou a todos os necessitados e beneficiou os mais espertos (genuinamente e/ou mal-intencionados). Além da falha mencionada, temos de considerar a lentidão judicial, propiciando a lamentável espera de pessoas deferidas e indeferidas. “Desde o início da pandemia, a Defensoria Pública da União (DPU) já instaurou mais de 160 mil processos de assistência jurídica, procedimento relacionado a atendimentos feitos pela DPU. Foram atendidas mais de 600 mil pessoas, beneficiando direta ou indiretamente aproximadamente 1,9 milhão”, segundo a Coordenação de Relacionamento com a Mídia da Defensoria Pública da União.
Precisamos saber quantos brasileiros ficaram sem o auxílio emergencial devido ao fatídico erro na fonte primária (o Ministério da Cidadania) e quantos são os erros de entendimento judicial. Enquanto estes levantamentos não forem realizados, expostos e corrigidos, podemos considerar a enorme possibilidade de assistirmos, pela vez na história brasileira, a um governo perder apoio com o assistencialismo.
Visando elucidar melhor estes questionamentos, exponho a seguir três exemplos de erros do auxílio emergencial. Nos dois primeiros, os nomes são fictícios, apenas com o objetivo de representar vários casos enquadrados, deixando bem claro que não se trata de situações isoladas – mesmo tendo consciência de que um único erro já seria o suficiente para caracterizar falha.
Precisamos saber quantos brasileiros ficaram sem o auxílio emergencial devido ao fatídico erro na fonte primária (o Ministério da Cidadania) e quantos são os erros de entendimento judicial
No primeiro caso, temos uma família composta por três pessoas, João, Maria e José. Apenas um deles, João, possui carteira assinada; Maria e José estão desempregados. João, sabendo que não se enquadra como beneficiário, não solicitou o auxílio. Maria tem o CadÚnico e conta poupança na Caixa. José, que não está no CadÚnico, solicitou o pedido através do aplicativo da Caixa. Como resultado, Maria recebeu diretamente em sua conta poupança o valor de R$ 600. José teve o pedido negado no primeiro momento e a mesma negativa na contestação, com a seguinte justificativa dada pelo DataPrev: “Membro familiar pertencente ao Cadastro Único”.
José declarou no aplicativo, de maneira honesta, os três familiares, pois estava atento ao fato de que, conforme as regras vigentes do Ministério da Cidadania a Lei 13.982/20, podiam auferir o benefício até duas pessoas por família; entretanto, o governo, juntamente com os órgãos responsáveis pela análise, negou o pedido afirmando que um membro da família (no caso, Maria) recebe o benefício por estar inserida no CadÚnico. De fato, ela está no cadastro e recebeu o auxílio diretamente em sua conta poupança, mas não possui nenhum outro recebimento, como o Bolsa Família – e, mesmo que recebesse, este não seria um empecilho para José receber o auxílio.
José foi honesto e coerente ao declarar Maria na solicitação, e pagou o preço de ser excluído do recebimento. Se, hipoteticamente, ele tivesse omitido o nome de Maria, teria recebido o auxílio, mas nunca faria isso por ser um cidadão íntegro. É justamente isso que ninguém está entendendo: a regra permite até duas pessoas. Na residência, apenas João estava com carteira assinada, enquanto Maria e José estavam desempregados; a renda per capita estava muito abaixo do teto estabelecido. Em suma, não havia motivos para negar o auxílio.
Por fim, neste primeiro exemplo, vale salientar que José seguiu os trâmites legais; a Justiça, em primeira instância, indeferiu o pedido em sentença de um magistrado totalmente desconectado das regras do auxílio. O defensor público entrou com o recurso em segunda instância baseando-se na Lei 13.982/20 e a nova sentença demorou um ano; novamente, uma juíza indeferiu o pedido. Houve erro judiciário, mas o principal erro partiu na origem: a união imperfeita entre o Ministério da Cidadania, a Secretaria de Cadastro Único, o Dataprev e a Caixa Econômica Federal.
No segundo exemplo, Carlos e Simone são divorciados e têm um filho menor de idade chamado Pedro, que mora com o pai. Carlos não tem carteira assinada, trabalha como autônomo sem recebimento por vias bancárias. Sabedores desta situação, ambos combinaram que Simone declararia no aplicativo o filho Pedro como residente no mesmo endereço, enquanto Carlos declararia morar sozinho. Como resultado, Simone, enquadrada na categoria “mãe solo”, recebeu o valor dobrado, R$ 1,2 mil, quando deveria receber apenas R$ 600, já que Pedro morava com o pai. Carlos também recebeu o valor de R$ 600 sem declarar o filho, evitando uma possível duplicidade.
Já o terceiro exemplo não usa nomes fictícios. E, antes de entrar nos detalhes, ressalto que não tenho como objetivo fazer nenhum juízo de valor em relação aos personagens, apenas exibir uma falha que é essencialmente do governo federal. Julgamentos morais ficarão a critério de cada leitor, pois não houve ilegalidade por parte das cidadãs recebedoras do benefício.
O milionário jogador de futebol Hulk, atualmente atacante do Atlético Mineiro, jogava no Shanghai SIPG, da China, em 2020. Segundo a revista France Football, Hulk ganhava aproximadamente R$ 105 milhões anuais. O atleta tem duas irmãs, Givanilda e Gilvânia, ambas sem vínculo trabalhista. Givanilda Vieira de Sousa recebeu R$ 1,2 mil, que é um valor destinado a mães chefes de família, enquanto Gilvânia Vieira de Sousa teve creditados em conta R$ 600 – a fonte dos dados é o Portal da Transparência, da Controladoria-Geral da União (CGU).
Do ponto de vista moral, podemos repudiar as ações de Givanilda e Gilvânia, mas, analisando friamente, ter um irmão rico não faz delas ricas também, até que se prove o contrário. Nenhuma das irmãs residia com Hulk, e o jogador repreendeu publicamente a atitude das familiares em 25 de julho de 2020, afirmando inclusive que sempre as ajudou financeiramente, o que nada significou para os incompetentes órgãos responsáveis pelas análises. Se a ajuda de Hulk às irmãs não foi identificada em transações bancárias e estas foram omitidas pelas requerentes, o sistema apontou as irmãs do milionário como elegíveis.
Atitudes semelhantes tiveram famílias com três, quatro, cinco, seis ou mais membros. Bastava a cada um omitir os nomes dos familiares.
Que conclusão tiramos disso tudo? O número total e os valores destinados aos cidadãos foram publicitados corretamente, mas divergem absurdamente da Lei 13.982/20, em que estava bem claro que que o benefício limitava-se a até duas pessoas por família. Genuinamente, algum cidadão pode ter declarado displicentemente apenas os próprios dados e ficou elegível. Em contrapartida, muitos também utilizaram das brechas incompetentes do Ministério da Cidadania no que tange à displicência no quesito assistencialismo, e por consequência burlaram as regras.
Nunca é tarde para o governo rever suas falhas, considerando, fundamentalmente, os danos aos cidadãos brasileiros que não receberam o auxílio. Avaliando os valores empenhados no auxílio emergencial, o conjunto da obra e a superficialidade de critérios, concluo sem sombra de dúvidas que não há motivos para categorizar o atual governo federal como resistente aos pagamentos, mas sou categórico em afirmar que, mesmo não havendo má fé, houve uma enorme incompetência.
Não ocorrendo o ressarcimento aos lesados e transparência dos erros relatados, o governo Bolsonaro infelizmente poderá sagrar-se o primeiro a perder apoio popular com a medida populista, visto que o legado ficará para o novo programa, o Auxílio Brasil. Contudo, também cabe o lamento pela inexistência de uma oposição propositiva no Brasil. Com tantos inimigos nas entranhas da política brasileira, fica demonstrado que os muitos opositores não têm aproximação com os reais desejos do povo.
Dinho Ferrarezi é jornalista.
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