“Os EUA não estão perdendo no Afeganistão, mas também não estão ganhando, o que não é bom”, diz a primeira frase de uma resenha ultrassecreta da guerra encomendada pelo então presidente George W. Bush, em 2008, segundo vários participantes da investigação. Outros estudos sigilosos sobre a estratégia norte-americana no conflito repetiram a conclusão.
O governo Trump assumiu a mais recente análise em agosto. Mais uma vez, seus assessores estabeleceram as causas: ópio, corrupção, facções étnicas e, acima de tudo, o apoio e a proteção fornecidos ao Talibã pelo Paquistão através do braço secreto de sua poderosa agência de espionagem, o Diretório para Interserviços de Inteligência.
Por que essa questão é tão problemática? Por que, desde os atentados de 11 de Setembro, os EUA não conseguiram ainda impedir que o Paquistão, supostamente nosso aliado, e que já recebeu bilhões de dólares em assistência, ajude o Talibã, ao custo altíssimo de vidas norte-americanas e da miséria afegã?
A principal razão disso é que os objetivos da guerra sempre foram, e continuam sendo, cheios de contradições e ilusões que o serviço de inteligência pode manipular. Tanto Bush como Barack Obama e Trump oferecem e ofereceram respostas incompletas, confusas ou pouco convincentes a questões essenciais: por que estamos no Afeganistão? Que interesses justificam nossos sacrifícios? Como essa guerra vai acabar?
Por que, desde o 11 de Setembro, os EUA não conseguiram impedir que o Paquistão, supostamente nosso aliado, ajude o Talibã?
Trump tenta ser diferente dos antecessores subindo o tom com o Paquistão, e já anunciou que seu governo vai segurar o US$ 1,3 bilhão referente à ajuda anual até que aquele país pressione o Talibã. Só que, infelizmente, o histórico do uso de ameaças e sanções para mudar a conduta paquistanesa é pífio, e a influência norte-americana ali é cada vez menor.
Ele não é o primeiro presidente a enfrentar dificuldades no alinhamento dos objetivos com a realidade: em 2009, quando Obama aumentou o número de soldados no Afeganistão, seus assessores identificaram apenas dois interesses vitais no conflito – isto é, o tipo de vantagem que justificaria mandar as tropas para o campo de batalha. Um era a segurança do arsenal nuclear paquistanês; o outro, a ameaça terrorista representada pela Al-Qaeda “e suas afiliadas”.
Na verdade, nenhum deles existia no Afeganistão, ficando limitados ao outro lado da fronteira, no Paquistão. Depois de 2002, foi para lá que fugiram os membros mais perigosos da organização. Mesmo assim, os estrategistas de Obama justificaram o aumento do efetivo militar alegando que, se o Afeganistão mergulhasse no caos, a Al-Qaeda voltaria para lá – medo até plausível, mas razão indireta e até especulativa para enviar homens e mulheres norte-americanos para o combate.
Obama e sua equipe também não sabiam se o Talibã afegão representava a mesma ameaça aos EUA do que a Al-Qaeda. O ex-presidente achava que não; queria manter o foco única e exclusivamente nesse segundo. No Pentágono, alguns comandantes queriam combater o primeiro, mas o gabinete de segurança nacional, incluindo o então secretário de Defesa, Robert Gates, reconheceu que seria uma guerra invencível, pelo menos no curto ou médio prazo e a um custo aceitável. “O Talibã faz parte do tecido político afegão”, observou ele, acertadamente, na época.
Demétrio Magnoli: Lições da guerra estúpida (14 de julho de 2016)
Os estrategistas decidiram, então, tentar “desgastar” o Talibã e “reverter seu ímpeto”, segundo participantes, ao mesmo tempo em que prepararia as forças de segurança locais para assumir a própria defesa. E, se a linguagem parecia vaga e subjetiva, era porque os objetivos também eram. A ideia era ganhar tempo e dar uma chance ao governo afegão.
A liderança do serviço de inteligência paquistanês percebeu que poderia esperar o desgaste de Washington – que Obama deixou bem claro ao anunciar, em 2009, que começaria a retirar suas tropas e a entregar a responsabilidade do conflito aos afegãos em 2011. Os generais paquistaneses, liderados pelo então chefe do Exército Ashfaq Parvez Kayani, que também era ex-diretor da agência de espionagem, chegaram a alertar a liderança militar dos EUA e da Otan, a portas fechadas, para o fracasso. “Com o número de soldados e o tempo que vocês têm, não vão conseguir nada”, afirmou ele, segundo um participante da reunião.
Com isso, quis dizer que a empreitada liderada pelos EUA contra o Talibã não seria decisiva e que as forças afegãs jamais se organizariam para ganhar o que quer que fosse. Kayani queria um plano menos ambicioso que tirasse os radicais da fronteira entre os dois países. Porém, considerando o papel da agência de inteligência no conflito, seu prognóstico do fracasso norte-americano podia ser interpretado como previsão e ameaça. O objetivo do Paquistão é impedir que a violência afegã atravesse a fronteira e que a Índia aumente a influência no país vizinho.
Além das políticas confusas, há outros motivos para que a iniciativa paquistanesa prevaleça, apesar da frustração e das ameaças ocasionais dos EUA: é de grande interesse norte-americano, assim como europeu, que as armas nucleares do Paquistão fiquem bem longe das mãos erradas e, por isso, sua estabilidade é crucial. Porém, o fato é que quanto mais violenta se tornou a guerra do Afeganistão depois de 2001, mais desestabilizado o vizinho ficou.
Depois que a Al-Qaeda se refugiou no Paquistão, passou a trabalhar em parceria com os radicais locais. A partir de 2007, essas redes se voltaram contra o Estado paquistanês, resultando nos piores anos de terrorismo interno que jamais se viu em sua história. Homens e carros-bomba explodiram nas principais cidades, levando milhares de civis, seguranças e insurgentes à morte. Há décadas o país paga um preço altíssimo por ter seu serviço de inteligência passando a mão na cabeça de grupos como o Talibã.
Somente em 2016 os paquistaneses restauraram, de alguma forma, a segurança doméstica; o ano passado foi o menos violento desde 2005, segundo o projeto de pesquisa Portal do Terrorismo do Sul da Ásia, mas, ainda assim, mais de 500 civis perderam a vida em atentados terroristas.
A linha de pensamento dos EUA e da Europa permanece a mesma, ainda que pouco divulgada ao público: para manter a estabilidade do Paquistão e seu arsenal nuclear sob controle, há um limite para a pressão externa aplicada a seu governo.
Obama autorizou a CIA a atacar a Al-Qaeda com drones armados nas regiões tribais paquistaneses, ao longo da fronteira com o Afeganistão – e, é claro, a batida ousada dos Seals em seu território para matar Osama bin Laden, sem pedir permissão. Apesar disso, a infraestrutura terrorista mais ampla, que inclui a liderança talibã afegã e vários outros grupos violentos e tolerados pelo serviço de inteligência paquistanês, permanece intacta, operando a partir de Lahore a Karachi, de Quetta à parte da Caxemira que lhe cabe.
Com efeito, a estratégia do Paquistão de dissuasão nuclear, concebida para manter o poderio militar indiano afastado, também impede a aproximação dos EUA – que, por sua vez, têm tanto medo dos riscos do caos violento naquele país que toleram a interferência de sua agência de espionagem no Afeganistão desde 2001, instância que, em outras circunstâncias, jamais seria tolerada.
É compreensível que a liderança afegã e os generais dos EUA se mostrem furiosos com a cumplicidade do Diretório com a violência no Afeganistão, que inclui a morte de soldados norte-americanos. Nos primeiros nove meses de 2017, a ONU registrou a morte de 2.640 civis, incluindo quase 700 crianças, número semelhante ao mesmo período no ano anterior, a maioria causada pelos talibãs e outras guerrilhas antigovernistas. Este mês o Talibã assumiu a responsabilidade pelo ataque ao Hotel Intercontinental, em Cabul, que matou pelo menos 22 pessoas, incluindo norte-americanos.
Quanto mais violenta se tornou a guerra do Afeganistão depois de 2001, mais desestabilizado o vizinho ficou
Há alternativas à aceitação da situação atual; se as sanções contra a agência de espionagem ou às forças armadas paquistanesas fossem combinadas com uma missão diplomática séria para engajar a China, de longe o aliado mais importante do Paquistão, além de outras potências regionais, um caminho se abriria para a transformação. China, Paquistão, Rússia e Irã têm um interesse comum com os EUA, que é impedir o Estado Islâmico (que já estabeleceu uma base no leste do Afeganistão) de se expandir. Não é de hoje que a China protege o Paquistão da pressão externa na questão do terrorismo e da proliferação nuclear, mas, ao mesmo tempo, tem interesse em uma região mais estável, onde haja uma urgência menor para a presença norte-americana de combate.
Há anos praticamente todo general norte-americano enviado para comandar a guerra do Afeganistão admite que o conflito tem de terminar com um acordo político, apoiado e ratificado pelas potências regionais, e que não há uma solução puramente militar contra o Talibã. Mesmo assim, os EUA continuam a dar prioridade à iniciativa beligerante sobre a diplomacia. Guerras civis amarradas como a do Afeganistão podem durar muito tempo e só se encerram graças a negociações com o inimigo.
O governo Obama tentou conversar em segredo com o Talibã, e chegou até a fazer algum progresso – desfeito pelas contradições da própria estratégia e pelo Diretório, que queria participação em qualquer acordo a que se chegasse, ainda que a liderança talibã preferisse se manter livre de qualquer influência paquistanesa. Muitos membros do governo afegão e antigos líderes do grupo tentaram chegar a um acordo de paz ao longo da última década, mas alguns foram assassinados pelos mais radicais.
Para os EUA, a alternativa a manter uma negociação difícil e incerta seria desistir e deixar o país, mas a consequência mais provável de uma retirada militar unilateral seria mais violência e uma maior influência por parte do Talibã e do Estado Islâmico.
A saída mais racional, para a qual Trump parece ser pouco indicado, seria trabalhar de perto com os aliados, dando prioridade à alta diplomacia, pressionando o Diretório de maneira inteligente e aceitando que, quando se trata do Afeganistão, o ponto de partida de qualquer política internacional é a humildade.