Todos os anos, cerca de 800 mil crianças são registradas no Brasil sem que, em sua certidão de nascimento, conste o nome do pai. A estimativa está na tese de doutorado da pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Ana Liési Thurler, Paternidade e Deserção – Crianças sem Reconhecimento, Maternidades Penalizadas pelo Sexismo.

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Divulgada no ano passado, a tese provocou grande repercussão na mídia por levantar números até então inéditos no Brasil e por mostrar a falta de medidas efetivas para enfrentar o problema. A pesquisa que levou a essa estimativa teve como base uma outra, feita pelo IBGE em 2003, que apontou 3,6 milhões de registros de nascimento lavrados anualmente no Brasil. Nesse universo, a média nacional de crianças registradas pelo pai tardiamente chega a 22,49%. Ou seja, os 800 mil da estimativa representam 22% desse total.

Os números surpreendem porque o "direito ao pai" está garantido na Constituição Federal de 1988, artigo 227, parágrafo 6.º, referendado pela Convenção dos Direitos das Crianças da ONU em 1989, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e pela Lei n.º 8.560, a Lei da Paternidade, de 1992. Essa lei, em especial, estabelece em seu artigo 2.º que "em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da alegação". É nesse momento, e nesse detalhe, que o problema começa.

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No geral, a comunicação ao suposto pai é feita pelo juiz. Se houver acordo, ele vai ao cartório e faz o registro. Se levanta dúvidas, o juiz encaminha o processo ao Ministério Público, que instruirá a mãe a abrir uma ação. Se ela não tiver condições para tanto, o MP tem o direito de abrir a ação em nome da criança. Embora o texto seja preciso, na prática a lei é difícil de ser cumprida. Falta estrutura para atender tantos casos e existem questionamentos quanto ao preparo do escrivão do cartório para fazer esse trabalho.

Foi no decorrer desse processo que o exame de DNA foi oferecido, de forma pioneira, como prova pericial. Com o passar dos anos, esta prova biológica tornou-se uma necessidade sine qua non para todos os juízes. Ainda nos anos 90, alguns estados e municípios já proviam exames para a comunidade carente. No estado de São Paulo, por exemplo, data de 16 de outubro de 1999 a publicação do Decreto Lei n.º 44.336, do então governador Mário Covas, que atribuía ao Estado o dever de subsidiar exames de DNA para a comunidade carente, incumbindo o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Imesc) de sua realização. A entidade deu então início a uma transformação em sua estrutura de HLA, exame antigo e pouco informativo, para DNA. Em janeiro de 2000, começou a realizar esse tipo de exame para testes de paternidade. O decreto de Covas regulamentou a Lei n.º 9.934, de 16 de abril de 1998, que assegura a gratuidade para realização, por determinação judicial, de exames DNA, aos comprovadamente pobres, nas ações de investigação de paternidade e dá providências correlatas.

Hoje, nessa especialidade, o Imesc é considerado o maior laboratório da América Latina. Em 2004, atendeu 17.203 pessoas e agendou 9.367 exames, uma média mensal de 780 exames/mês. Único problema: o laudo demora quase um ano para ficar pronto. Ou seja, a entidade não dá conta de todas as demandas, mesmo a lei estabelecendo que ela é obrigada a abrir licitação e contratar outras empresas sempre que o tempo de atendimento superar dois meses. Hoje, a entidade terceiriza para a iniciativa privada cerca de 300 exames/mês, no máximo. Claramente, o acúmulo de processos pode ser atribuído à resistência do instituto em ampliar as licitações. Aliás, pela lei, a própria licitação para o Imesc é renovada a cada cinco anos.

O processo de coleta é bastante rápido a partir do momento da emissão do ofício do juiz e ganhou agilidade no ano passado, quando o procedimento foi descentralizado em 11 regiões do estado de São Paulo. Mas tudo continua emperrado quando se chega ao laudo, centralizado no Imesc. A postura do Imesc se contrapõe à postura adotada em Tribunais de Justiça de outros estados, que realizaram licitações estabelecendo preços e prazos para a entrega dos laudos periciais dos exames de paternidade por testes de DNA. É o caso do Tribunal de Justiça de Sergipe, por exemplo, que realizou pregão eletrônico e, a partir de outubro passado, começou a enviar para a iniciativa privada 150 exames por mês, cujos laudos devem ser entregues em dez dias. Outro exemplo vem dos EUA, onde 100% dos exames, cerca de 300 mil testes/ano, são feitos pela iniciativa privada, sendo que duas empresas têm mais de 80% do mercado.

Apesar de, no Brasil, o papel da busca do pai estar reservado ao Estado, é preciso criar mecanismos para que esse papel seja efetivamente cumprido. No estado de São Paulo, em particular, é preciso que o Imesc abra as portas às empresas privadas para realização de exames. Essas empresas estão sujeitas à fiscalização, registros rígidos e exames de proficiência. Em nível nacional, cabe ao governo federal criar critérios de qualificação para laboratórios privados que possam oferecer seus serviços ao Estado, regulamentando um sistema eficiente de licitações, sem espaços para barganhas.

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É necessário, ainda, deixar de lado o preconceito de que prestação de serviços por empresa privada em área pública é sinônimo de corrupção implícita. Na maioria das vezes, as empresas privadas reúnem melhores condições tecnológicas, o que as torna mais eficientes em busca de resultados. Bastaria ao Estado criar alto nível de exigência técnica, ditar preços máximos aceitos e fiscalizar. No caso dos testes de paternidade por exames de DNA, são iniciativas como essas que podem agregar valor ao papel reservado ao Estado. Além disso, com essas iniciativas ganhariam as mulheres e, sobretudo, seus filhos, que deixariam de fazer parte da triste estatística levantada pela pesquisadora da UnB.