| Foto: Fabio Abreu

Muitos liberais clássicos consideram que o liberalismo foi usurpado pela esquerda e virou algo muito distinto na era moderna, um “progressismo” tribal que enaltece políticas de identidade e leva ao aumento, não à diminuição, do grau de ingerência estatal em nossas vidas. Mas e se isso não for um desvio do liberalismo clássico? E se o “liberalismo” atual for apenas uma segunda onda, uma consequência inevitável das próprias premissas dos liberais?

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É o que sustenta o professor Mark Mitchell em The Limits of Liberalism. Trata-se de um livro denso, com muita filosofia, mas com uma crítica ao liberalismo bastante convincente. Ele busca em Platão o alerta de que a liberdade, levada ao extremo, ou seja, aquela que busca erradicar todos os limites, vai gradualmente se converter em tirania. Um alerta que Alexis de Tocqueville também fez séculos depois.

O principal problema, segundo o autor, é o abandono da autoridade da tradição nessa trajetória. O liberal parte da premissa de uma razão independente, abstrata, capaz de definir conceitos éticos do zero, sem levar em conta os séculos de experiência acumulada. Descartes seria o principal pensador por trás dessa visão moderna. Ele iria se livrar de todos os preconceitos para utilizar somente a razão universal em busca da verdade, sem perceber que seu cogito já se dava com base numa herança intelectual. Para Mitchell, trata-se de uma empreitada ilusória, fadada ao fracasso da incoerência, e com resultados práticos perigosos.

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Essa ideia de que o passado é um recipiente de obscurantismo e que o futuro pertence às luzes por meio de indivíduos que foram capazes de abandonar todas as amarras do passado está bastante enraizada no liberalismo progressista, que destaca a figura do “eu autônomo”. Esse indivíduo autossuficiente, que vai determinar seus valores com base apenas na razão, é um dos pilares do liberalismo. Para Mitchell, porém, essa visão liberal só deu relativamente certo na América por causa de um solo fértil em termos de valores morais, como legado do cristianismo.

Hábitos e práticas estabelecidas ao longo do tempo permitiram o florescimento dessa liberdade individual sem os excessos inevitáveis das premissas liberais, por algum tempo. Ou seja, a inércia da tradição impediu que a liberdade puramente racional virasse licenciosidade inconsequente, egoísmo destrutivo, subjetivismo exacerbado e outros males que enxergamos no “liberalismo” hoje. A liberdade não sobrevive num vácuo de valores, e a América tinha os valores adequados por meio de sua tradição.

Os liberais seculares acham que é possível abrir mão desse arcabouço tradicional e, ainda assim, preservar seus frutos. O autor discorda, e a crise atual da liberdade corrobora essa dificuldade. Sem o contrapeso da tradição, as premissas liberais podem levar aos excessos da Revolução Francesa, que os “pais fundadores” da América mais liberais chegaram a defender, ao contrário dos conservadores.

Para Mitchell, o problema reside na epistemologia, na rejeição de qualquer autoridade além da razão para impor limites aos apetites humanos ou definir hierarquia de valores. Se tudo que importa é a “liberdade de escolha individual”, livre de qualquer coerção, então caímos nesse subjetivismo emocional de gente que “escolhe” ser do sexo oposto à sua biologia, e essa ideologia de gênero vem em nome na liberdade.

Para piorar, a tolerância, um valor liberal, transforma-se em completa intransigência com quem não reza da mesma cartilha. Se você ousar questionar essas premissas, já será considerado um antissocial perigoso, um preconceituoso autoritário, que deverá ser forçado a aprender como ser “livre”, como queria Rousseau. Dando vazão aos apetites em nome da liberdade, acabamos com um liberalismo iliberal.

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As elites cosmopolitas costumam endossar essa visão, e seus representantes se sentem livres de grilhões como tradição, pátria, costumes. Eles são os “cidadãos globais”, desapegados desses preconceitos, libertados das restrições de particularidades locais e da tradição. Normalmente, essas pessoas abraçam abstrações, tais como a “humanidade”, mas não demonstram a mesma empatia para com o próximo, o indivíduo de carne e osso, o seu vizinho.

Isso vai na contramão do que defendia Burke ao destacar a importância dos “pequenos pelotões”, das associações de indivíduos próximos com uma herança semelhante, que seriam cruciais para preservar a liberdade. O núcleo familiar é o exemplo mais óbvio, e não é por acaso que os cosmopolitas reduzem cada vez mais a importância da família, têm menos filhos, já que filho exige sacrifício e o hedonismo acaba falando mais alto. Virtudes como o sacrifício e a prudência costumam depender mais desse pacto social entre gerações, de um acordo tácito entre os que já morreram, os que vivem e os que ainda nem nasceram.

Para os cosmopolitas, existem apenas duas opções: seu “liberalismo” ou a violência do nacionalismo e do tribalismo. Curiosamente, o próprio “liberalismo” que defendem se tornou tribal, ou seja, estaríamos condenados a optar por um dos dois tribalismos. Para Mitchell, porém, existe uma terceira alternativa, uma espécie de “localismo humano”, que resgata a importância da tradição e impõe certos limites a essa liberdade individual, justamente para preservá-la.

Para desenvolver seu raciocínio, o autor busca em pensadores como Michael Oakeshott, Alasdair MacIntyre e Michael Polanyi os pilares da defesa da tradição na formação de nossas ideias e da própria razão. E oferece, em seguida, a possibilidade de resgate dessa visão, encontrando inspiração em Agostinho, Burke e Eliot. São muitos pontos importantes que não podem ser resumidos aqui, mas a essência está nessa crença de que a tradição é fundamental pilar da liberdade.

É preciso tomar cuidado com os “cabeças de planilha”, aqueles que habitam torres de marfim e, de lá, produzem modelos sociais do zero, puramente “racionais”, sem levar em conta a lição básica da experiência, já apontada por Aristóteles: moral é um hábito, e a prática é indispensável, não pode ser substituída por normas abstratas. Tradição não é respeito às cinzas, mas preservação do fogo, um esforço contínuo de absorver uma herança, e deixá-la para as próximas gerações. Não quer dizer que seja imutável, de forma alguma. É dinâmica, tem conflitos internos, pode ser alterada, desde que em cima dos seus alicerces, numa cadeia de continuidade eterna.

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Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.