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Recentemente um conhecido palestrante afirmou, como explicação para a ótima qualidade de suas palestras, ter lido mais de 10 mil livros. Declaração que poderia levantar humildes suspeitas: não a parte da qualidade das palestras, das quais não sou ouvinte e é coisa relativa ao julgamento de cada um, mas sim no que diz respeito à quantidade de livros lidos.
Em matemática simples, e imaginando um leitor que tenha começado a ler aos 10 anos, e que 56 anos mais tarde tenha atingido a marca de 10 mil livros, a média, arredondada, seria de espantosos 15 livros por mês. Ou seja: um livro a cada dois dias. Incluindo aí compromissos sociais, trabalho, doenças, casamento, mortes de pessoas próximas, nascimento de filhos etc. Não sendo possível manter essa média vertiginosa nesses momentos da vida, inevitavelmente seria preciso aumentar ainda mais o ritmo de leitura em períodos posteriores.
Igualmente curioso e numericamente semelhante ao caso acima é o de um leitor de Sorocaba (SP), que também afirmava ter lido mais de 10 mil livros, revelando ainda haver “zerado” várias bibliotecas em suas viagens de férias. Por fim, mas com maior precisão, a matéria de uma revista da área de negócios, segundo a qual “ler 200 livros por ano é mais fácil do que você imagina”. Ainda que alguns detalhes da história sejam superestimados, pelo menos o título tende a ser verdadeiro para a maioria dos casos.
Um dos efeitos negativos dessas afirmações (o efeito negativo de suas práticas explico na sequência) diz respeito aos que as tomam como exemplos a serem seguidos. Considerando não serem performances possíveis de serem alcançadas em contextos normais, a conclusão que restaria a muitos é a de que não ler 10 mil livros é um evidente sinal da própria incapacidade. Inclusive porque nenhum dos mencionados leitores de alta performance faz referência a dificuldades e renúncias de qualquer tipo: “é fácil, basta querer!” Em outras palavras, ao leitor comum, a conclusão é a de que ler muitos livros é “coisa muito diferente do que até então imaginava”, restando-lhe como escolhas entregar a própria vida à causa da leitura ou confiar cegamente naqueles que, em seu lugar e por ele, leram muitos livros.
Outra razão negativa da leitura de milhares de títulos é a de simplesmente não ser necessário nem muito proveitoso ler tantas obras. Mesmo não existindo referência a números, no ótimo A vida intelectual, de A. Sertillanges, a ideia é a de não gastarmos muito mais que duas horas por dia lendo e escrevendo, importando muito (e em proporções semelhantes) a necessidade de aproveitarmos bem o restante do tempo com atividades que farão essas duas horas renderem bem.
Não considero a questão passível de relativização, mas sempre é possível existir os que a percebem assim. Nesses casos, o que vem a ser ler um livro? Segundo um antigo amigo, Jorge Luís Borges não via o menor problema em ler apenas trechos de livros, ao sabor do acaso. Já Anatole France, ao ser indagado se havia lido todos os volumes de sua enorme biblioteca, respondeu: “Nem sequer a décima parte. Ou, por acaso, o senhor usa diariamente sua porcelana de Sèvres?” Recentemente descobri um improvável livro sobre o assunto: Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard. Inicialmente pensei que a ideia da obra fosse analisar o hábito de alguns intelectuais de exagerarem a quantidade e qualidade dos livros que haviam lido. Para meu espanto, tratava-se de uma relativização do assunto com ares de método prático para carreiristas acadêmicos e demais interessados em alcançar pleno domínio do javanês. Achei melhor, ao perceber isso e em coerência com o título do livro, não terminar sua leitura.
Voltando ao início do problema, sempre é o caso de nos lembrarmos que a grande especialidade dos modernos palestrantes é, antes de tudo, a de vender palestras; menos mesmo que montar negócios, desvendar os mistérios da mente humana ou simplesmente ler livros. E é o caso de reconhecer que mesmo essa questionável especialidade exige talvez tanto trabalho e dedicação quanto montar um negócio de verdade ou ler milhares de livros. Com a ajuda de ideias que foram transformadas em coisas sobre as quais a maioria acredita cegamente, falar de livros sempre produz bons resultados: a quantidade de livrarias per capita da Argentina, “a leitura nos torna mais sensíveis”, “as pessoas seriam melhores se lessem mais livros” etc. Algo tão inquestionável quanto a recomendação de fazermos exercícios físicos ou não ingerirmos álcool antes de dirigir.
Mas o fato é que os livros não salvarão o mundo. Assim como existem pessoas boas e pessoas más, existem livros bons e livros ruins. Ler livros não significa ser automaticamente transportado para uma condição existencial superior. Da mesma forma que a crescente sensibilidade pet não significa, por si mesma, que seus adeptos sejam versões melhoradas das mesmas pessoas de sempre. Inclusive não foram poucos os vilões da história que adoravam seus animais de estimação. Mas suspeito, a respeito dessa espécie de crença cega nos livros, ser também a de professores que, mesmo lendo pouquíssimo, adoram recomendar a seus alunos que o façam.
Por fim e afinal, não ler ou ler, e se for esse o caso, quantos livros, por mês, ano ou dia? Uma boa resposta é talvez a de Tostão, ex jogador de futebol e campeão mundial pela Seleção Brasileira. Quando perguntado sobre o porquê de não dar palestras que relacionassem sua trajetória vitoriosa com as dificuldades de outras profissões, respondeu, com a honestidade que lhe é peculiar, que simplesmente essas comparações não eram possíveis nem úteis, que na verdade cabe a cada um descobrir o melhor caminho para alcançar o que julga ser o mais importante da vida.
Fábio Viana Ribeiro é professor associado da Universidade Estadual de Maringá e apresentador do programa Bibliofonia, na UEM/FM.