Fiel à tradição baiana, Antônio Carlos Magalhães acabou se parecendo com um personagem de Jorge Amado. Quem leu "Gabriela Cravo e Canela" ou viu a magnífica novela com Sônia Braga, Paulo Gracindo e Armando Bogus, há de se lembrar que o coronel Ramiro Bastos, depois de décadas de domínio político em Ilhéus, foi derrotado por Mundinho Falcão, o político moderno, com idéias arejadas importadas do Rio de Janeiro, a capital federal de então. Só espero que Jacques Wagner não repita uma das cenas finais do enredo, oferecendo a mão a beijar aos habitantes, prontos a mudar de coronel, mas resignados a não abandonar a cangalha.
O desmonte da mais empedernida oligarquia política em nosso país foi um dos resultados mais auspiciosos da eleição do domingo passado. Mas o simples fato de que na segunda-feira, dia 30, a vida voltou ao normal no Brasil e os mercados financeiros funcionaram sem um soluço de apreensão, já demonstra um enorme avanço institucional. Em outras épocas, com qualquer resultado que fosse, já haveria algo no ar além dos aviões de carreira ou na situação caótica em que se encontra a aviação brasileira, em vez dos aviões de carreira.
Acabado o momento da política, chega a hora da justiça. Muitos eleitos já se apressam em se autodeclarar julgados e absolvidos pelo voto popular. Quem foi eleito, deve se lembrar que recebeu apenas uma demonstração de confiança de seus eleitores, mas não recebeu uma indulgência plenária. Essa distinção entre popularidade eleitoral e responsabilidade perante a lei é fundamental. Benjamin Disraeli, o estadista inglês, disse certa vez que "indivíduos formam as comunidades; mas são as instituições que formam um país". A frase é oportuna para se colocar as coisas nos devidos lugares. Eleições refletem a vontade política momentânea dos eleitores, a qual deve ser respeitada e acatada sem hesitações nem ressalvas. Mas eleições não julgam, condenam ou absolvem ninguém pois quem se encarrega disso é a Justiça, uma das instituições centrais das sociedades democráticas.
Esse será o próximo grande teste da democracia brasileira: demonstrar concretamente que se o país tem instituições suficientemente sólidas para que ninguém se veja tentado a desrespeitar a vontade popular, também as tem para separar claramente a popularidade eleitoral de candidatos a cargos eletivos das suas responsabilidades pelo que fizeram, mandaram fazer ou deixaram que fosse feito em desobediência à lei.
A Justiça terá também um outro papel: preservar a liberdade de expressão no país, pois as manifestações de hostilidade contra jornalistas e veículos da imprensa que se colocaram em oposição aos vencedores das últimas eleições sinalizam para uma péssima direção. Todo mundo sabe que na China os mensageiros eram decapitados quando traziam más notícias. Guardadas as devidas proporções, algo parecido está acontecendo entre nós. Políticos, seus indefectíveis aspones e militantes dos "movimentos sociais" investem contra os jornalistas e veículos que consideram mensageiros de más notícias para suas preferências políticas e suas crenças ideológicas. Se não houver uma reação clara e vigorosa, logo estarão investindo contra toda e qualquer pessoa que se exponha ao risco de contrariá-los.
É necessário ter em mente que nosso processo eleitoral só atingiu o nível de representatividade que hoje tem porque a vida política brasileira, apesar de todos os seus defeitos, foi oxigenada pela existência de uma ilimitada liberdade de expressão na imprensa ou fora dela. Apesar da frustração que alguns experimentam com a forma pela qual essa liberdade é exercida por jornalistas e formadores de opinião em geral, nada justifica tentativas de intimidação ou de violência moral ou física contra eles. É na Justiça que os membros das sociedades institucionalmente desenvolvidas vão buscar a preservação do equilíbrio entre o direito de expressão de uns e o direito de outros de não ser desmoralizados gratuitamente pelos primeiros.
Se o cumprimento da vontade popular que foi demonstrado nas urnas já está garantido pelo nosso amadurecimento institucional, é necessário agora garantir também o direito de as pessoas expressarem e publicarem livremente suas opiniões por mais desagradáveis que soem aos ouvidos dos mandarins. E aos que as levam ao conhecimento público o direito de fazê-lo sem correr o risco de ser decapitados, desde que estejam prontos a responder pelos abusos que eventualmente cometerem. Na caracterização desse direito não cabe qualquer distinção eufemística entre democracia burguesa ou popular. Existe o direito de expressão. Ou não existe.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do mestrado da FAE Business School e mebro da Academia Paranaense de Letras.